Em Alfama, até os enfeites de Sto. António desapareceram das varandas

Sem retiros, sem arraiais e sem turistas, o bairro lisboeta está vazio e silencioso.

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daniel rocha

Caiu o “L” de Alfama da porta do Elevador de Santa Luzia. Idalécio Almeida, que assumiu a guarda do espaço no início do mês, não perdeu tempo a encontrar a letra perdida, a pintá-la de fresco e a repô-la na fachada branca, não fosse a fama de Alfama ser manchada por tão triste incidente. Agora, a todos os que passam, caras conhecidas da vizinhança, ele repete: “Já apareceu o L.”

Em dias tão estranhos como estes, em que o silêncio é profundo e prolongado, os habitantes do bairro lisboeta parecem precisar de certificar-se de que aqui ainda é Alfama, apesar de ser Junho e não se ver sinal de festa.

“Isto é mais uma coisa para a História universal, os nossos netos vão dar isto nas aulas”, reflecte Idalécio. O elevador, que vence o desnível entre a Rua Norberto Araújo e o Miradouro de Santa Luzia, está instalado no prédio em que ele nasceu e habitou parte da vida. Hoje o seu interior é praticamente oco, só umas escadas e um ascensor mecânico, restam as memórias e a Rádio Amália para lhe dar cor.

Outros tempos

Idalécio Almeida recorda-se de a soleira da porta servir para montar um fogareiro e assar sardinhas nos dias que rodeavam o Santo António, uma festa a que acorria primeiro a família e a vizinhança e depois também gentes de toda a Lisboa. Não era ainda o tempo dos grandes arraiais, com retiros em cada canto e feroz concorrência para deitar a mão às licenças da junta.

Isso veio mais tarde. Idalécio monta todos os anos um retiro popular no Largo de São Miguel, epicentro da festa alfamista, e de lá tira uns dois ou três mil euros num mês, que lhe servem de almofada para o resto do ano em que a reforma é magra. Em 2020, canceladas as festividades, a Junta de Santa Maria Maior pô-lo de vigia ao elevador. “Fui chamado no dia 1 de Junho” diz. “Estou inteiramente de acordo com as medidas tomadas. Temos 700 pessoas no bairro presentemente e não temos nenhum caso de covid. Então isso não é de valor?”

Sem as grandes bancas e os bailaricos que geralmente atraem milhares de pessoas, pelo bairro ainda se pensou em festas mais circunscritas, como antigamente, juntando apenas uns quantos amigos e família. Mas também isso parece muito improvável este ano. Agentes da Polícia Municipal têm percorrido Alfama de ponta a ponta para dissuadir concentrações, os fogareiros à porta estão proibidos e até as fitas e pendões estão a ser tirados das varandas.

Polícia bem visível

“Nunca vi Alfama com tanta polícia como agora”, afirma Rui Teixeira na cozinha da Sociedade Boa União. A meio da semana passada, o Beco das Cruzes que serve de casa à colectividade estava enfeitado com as luzes e os pendões próprios desta época, mas a polícia mandou tirar para não ser um chamariz. Às quatro da tarde, no clube está apenas um homem a beber cerveja. “Nesta altura, a esta hora, eu tinha isto tudo cheio. Ainda estava aí a assar sardinhas e chouriços. Se eu lhe disser que hoje servi três almoços…”, conta Rui Teixeira.

Num bairro em que a economia está muito dependente do turismo e das Festas de Lisboa, a pandemia trouxe consequências que se vão prolongar. Uma das mais visíveis é que as ruas estão vazias. Na Rua dos Remédios, cozinheiros e empregados dos cafés e restaurantes passam o dia à porta à espera dos clientes que não vêm. Nas ruas que conduzem a São Miguel, as esplanadas estão montadas e sem gente. “Estou aqui desde as onze e meia e vendi uma dose de caracóis”, lamenta Ronaldo Silva, do restaurante Esquina de Alfama. “Num Verão bom, podia-se pagar uma renda de 3000 euros com um só dia de trabalho. Nem no Inverno estivemos assim.”

No Beco da Bicha, duas vizinhas partilham do lamento por não haver festas, mas com moderação. “Isto agora é só negócio”, atira Fernanda. “Antigamente é que era Santo António”, colmata Isabel, no jeito típico de quem está certo de saber do que fala.

Em tempos idos, naquele pequeno reduto ao fundo da Rua da Regueira realizava-se um pequeno bailarico e Isabel descia do terceiro andar com o fogareiro e as sardinhas para assar. Há uns anos cansou-se “de andar para cima e para baixo com as travessas” e a tradição perdeu-se. “Uma amiga minha veio cá passar o Santo António, arranjou namorado e casou-se com ele”, relata Fernanda.

Ambas recordam com saudade os tempos da meninice e juventude em que a festa propriamente dita se cingia a poucos dias (e não ao mês todo, como actualmente), mas havia peditórios para os tronos, distribuição de flores e outras actividades que preenchiam Junho. Entretanto, com o passar dos anos, os arraiais cresceram e as multidões também, só a população local foi decrescendo. “Já não há cá ninguém. O bairro está vazio, vazio”, constata Isabel. Este ano, afirma, as sardinhas vão comer-se a outro lado.

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