Dia 62: será que as mães dos mafiosos amam os seus filhos?

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Minha muito querida e adorada Filha,

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Tenho estado a adiar a carta prometida sobre o amor incondicional das mães. Depois das tuas ameaças, fiquei com medo de que o meu pensamento sobre esse assunto, soasse a sacrilégio.

A verdade é que não tenho a certeza se o amor de uma mãe é infinitamente incondicional. Não estou a falar daquela chantagem do “se não fizeres o que eu quero, não gosto de ti!”, nem tão pouco “se não fores quem eu sonhei, esquece o meu amor” — que também existe —, mas de amar alguém que esmagou todos os nossos limites interiores mais profundos, aqueles que definem as pessoas de que somos capazes de gostar.

Não sei se uma mãe consegue amar incondicionalmente um filho que ofende sistematicamente esses seus valores, mas talvez se consiga enganar a si mesma, dizendo que a história não é bem assim. Talvez o narcisismo de uma mãe nunca a deixe ver a faceta mais negra de um filho, mesmo que seja um Hitler — nos filmes, os mafiosos que matam e esfolam toda a gente, são sempre umas criaturas extremosas com as suas próprias famílias, sobretudo com os filhos. Talvez a culpa não a deixe ver essas falhas de carácter, porque senão teria de se odiar a si mesma. Qualquer coisa como “o meu filho seria incapaz de uma coisa dessas”.

Desculpa, onde já vou nesta conversa! Já estou a ver o título do meu novo livro Será que as mães dos mafiosos amam os filhos?, adiante. Ou melhor voltando atrás. Vou ser sincera: não sei se quando perdemos a confiança num filho é fácil recuperá-la, pelo menos rapidamente. Se quando nos magoa muito, é fácil apagar a memória tudo, como se nada se tivesse passado.

Talvez seja uma coisa diferente do amor incondicional, mas suspeito que muitas mães não dão a si mesmas o direito de dizer: “Deste meu filho, neste preciso momento, não gosto!” E se aceitarem que têm esse direito, não é uma coisa boa, em lugar de se sentirem as piores das mães porque, supostamente, as boas amam incondicionalmente.

Confuso? Arruma-me as ideias, please.


Querida Mãe,

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A maternidade está cheia de ideias feitas sobre o que se deve sentir e o que se deve dizer. Acredito que a fórmula “ser mãe = amor incondicional” não será verdadeira para todos. Nem a parte do incondicional, nem, por mais que nos custe aceitar, a parte do amor. Acho que a primeira coisa é esta diferença tão grande entre gostar e amar. Amo os meus filhos mais do que a minha própria vida, mas há momentos em que não gosto muito deles!

Por isso acho que para que esta ideia do amor incondicional funcione temos que repensar a ideia de amor. Afastando-a do lado mais romântico e de filtros cor-de-rosa. Vendo o amor como um compromisso profundo de querer bem àquela pessoa, para lá de todas as palavras e de todas as razões. De querer protegê-la, ajudá-la e de a aceitar para lá daquilo que diz ou faz. Parece-me que os pais o fazem, na maior parte dos casos, muito intuitivamente. Nos primeiros anos de vida, os pais basicamente dizem: podes chorar, refilar, acordar-me mil vezes durante a noite, fazer-me enjoar, atirar tudo ao chão e eu não vou nunca deixar de te amar (ainda que odeie levantar-me a meio da noite, que odeie arrumar o quarto pela milésima vez), nunca vou deixar de cuidar de ti.

Mas claro, em pequeninos é mais fácil... Apesar de tudo não assumimos as contradições e as rebeldias como uma afronta aos nossos valores, são de algum modo “controláveis”, são “nossos” e é muito difícil não cuidar e gostar de algo que é parte de nós.

Como a mãe diz, e depois? Quando crescem, quando nos desiludem, no limite quando se transformam numa pessoa que nós nunca, jamais, quereríamos conhecer? Felizmente não sei. Mas, não acho que seja uma questão de culpa ou de narcisismo. Parece-me que a pessoa pode odiar a pessoa em que se tornou mas nunca vê-la só por isso... Uma mãe vê a criança, o jovem que foi, vê o bom que há nele, mesmo que profundamente escondido. Quer ajudar, quer proteger (no limite, protegê-lo dele próprio e daquilo que se tornou!). Quer salvar.

Tenho um argumento muito forte para não acreditar no inferno. Não acredito (mesmo presumindo que tudo o que se passa depois da morte esteja para lá de qualquer compreensão humana) que uma mãe possa alguma vez estar “no céu”, se o seu filho “estiver no inferno.” E isso, por mais doloroso que seja, é amor incondicional.


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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