A imunologia ao leme da pandemia

Há que aguardar a tão ambicionada imunidade de grupo, potencialmente através de uma vacina eficaz que reduza este novo coronavírus a old news. Até lá, temos que proteger os grupos de risco e retomar as atividades profissionais e sociais seguindo as recomendações das autoridades – com paciência, mas sem medo.

Em tempos de pandemia, um herói inusitado: o imunologista. Ao estudar a resposta imunitária à infeção, o imunologista posiciona-se na linha da frente perante um vírus como o SARS-CoV-2, causador da covid-19. A sua intervenção é tanto mais relevante perante o desconfinamento. Antes, durante o estado de emergência, a estratégia dominante era passiva – evitar exposição – mas agora há que encarar o inimigo de frente. E controlá-lo de dois modos principais, ambos apanágio da imunologia: testando para aferir da resposta ao contacto com o vírus, agindo em consonância; e desenvolvendo uma vacina eficaz, que quebre as cadeias de transmissão comunitária do SARS-CoV-2. O objetivo final é apenas um, chegar ao ponto de equilíbrio na convivência com o vírus, a que chamamos “imunidade de grupo”.

A imunologia surgiu precisamente em resposta às infeções microbianas, na sequência das primeiras experiências de vacinação, por Benjamin Jesty e Edward Jenner, na Inglaterra de finais do século XVIII. A história de Jenner é um dos clássicos da ciência: inspirado por relatos de que as leiteiras do Gloucestershire infetadas com varíola bovina não desenvolviam varíola humana (numa altura em que esta era o grande carrasco da humanidade), Jenner “vacinou” (o nome vem precisamente de vacca, em latim) em Maio de 1796 o jovem James Phipps com material recolhido de lesões de varíola bovina da leiteira Sarah Nelms.

Dois meses depois, Jenner infetou Phipps com material de lesões de varíola humana, e observou uma proteção completa e duradoura contra o aparecimento de sintomas e sinais de doença. Jenner e seus contemporâneos repetiram amiúde este tipo de experiências com grande sucesso, levando à difusão rápida da vacinação para o resto da Europa e para os Estados Unidos. Já no século XX, foram obtidos resultados notáveis no controlo de doenças como o sarampo, a varicela ou a poliomielite; e sobretudo da varíola, que a 8 de Maio de 1980 foi declarada extinta do planeta pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Quarenta anos depois desse marco histórico na saúde pública mundial, eis-nos de novo expectantes (senão ansiosos) por uma vacina eficaz, desta feita contra um vírus novo para os humanos, ao contrário do da varíola que já afetara faraós do Antigo Egipto. E sabemos que, neste intervalo, não se conseguiram desenvolver vacinas com a eficácia desejável para as big 3 doenças infecciosas: tuberculose, malária e infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV). Mas as perspetivas para SARS-CoV-2 são encorajadoras: há várias vacinas em desenvolvimento acelerado na China, nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Holanda; e os resultados em modelos pré-clínicos, nomeadamente em macacos, são positivos, com dois estudos mostrando proteção total contra reinfeção (na escala temporal testada). Há que aguardar fases mais avançadas, em ensaios clínicos e, se tudo correr bem, a sua implementação no “terreno”.

Mas para além da tão desejada vacina, a imunologia terá outro contributo muito importante nos próximos tempos de covid-19: os testes serológicos. Estes são ensaios imunológicos que medem a presença de anticorpos específicos para SARS-CoV-2 no soro de uma amostra de sangue. Os anticorpos, que são produzidos por células imunitárias chamadas linfócitos B, conseguem ligar-se e neutralizar o vírus, impedindo a infeção das células do hospedeiro, tal como já demonstrado inclusivamente para este novo coronavírus. Só quem já tiver entrado em contacto com o SARS-CoV-2 terá níveis detectáveis de anticorpos específicos para este vírus no sangue. Por isso, os testes serológicos permitem obter uma estimativa concreta de quão comum é a incidência da infeção, incluindo os casos assintomáticos que tendem a passar despercebidos; orientar medidas de controlo baseadas no desenvolvimento de imunidade; e monitorizar a evolução da aquisição da “imunidade de grupo” essencial para a resolução da pandemia.

Em Portugal, os imunologistas estão empenhados em contribuir para este acompanhamento serológico da população. Por exemplo, no consórcio Serology4COVID, constituído por cinco instituições científicas de Lisboa e Oeiras, estamos a implementar um teste serológico, produzido em Portugal e da mais elevada qualidade (especificidade e sensibilidade) validada pelas nossas equipas de imunologistas, que poderá ser usado em inquéritos populacionais aos níveis local e nacional. Esperamos que se constitua como uma ferramenta importante na tomada de decisões críticas para a saúde dos portugueses e da economia pelas autoridades competentes.

A história mostra-nos que a imunologia tem sido fundamental para travar ou encontrar soluções para diferentes doenças e nunca, como hoje, tivemos tantas ferramentas nem toda uma comunidade a trabalhar em conjunto para a resolução do mesmo problema. Só o futuro dirá se os imunologistas sairão desta pandemia como “heróis”. Há que aguardar a tão ambicionada imunidade de grupo, potencialmente através de uma vacina eficaz que reduza este novo coronavírus a old news. Até lá, temos que proteger os grupos de risco e retomar as atividades profissionais e sociais seguindo as recomendações das autoridades – com paciência, mas sem medo.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Professor de Imunologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e vice-director do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes​

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