Trump e o silêncio dos decentes

É neste ponto que está hoje a política americana: um general experiente, reconhecido e da mesma base pede para que se evite levar em consideração as palavras e ações do Presidente do país. Que não se faça o que ele sugere, de forma a manter a decência.

Bem antes de Donald Trump chegar ao poder, já era possível prever o retrocesso civilizacional que significaria a sua presidência. Uma vez eleito, outros analistas políticos americanos antecipavam-no e referiam que quando isto tudo terminasse, dispensava-se qualquer referência futura sobre como os gestores de negócios (sendo que ele nem isso era) poderiam servir melhor o poder governamental do que a maioria dos políticos. Até disso me lembrei quando li o recente comunicado do ex-secretário de Estado da Defesa da Administração Trump, James Mattis. Demitido em dezembro de 2018, o general Mattis, oriundo da linha do atual Presidente, interrompeu o seu silêncio público de ano e meio e fê-lo com estrondo.

E o que disse alguém que conhece e privou de perto com Donald Trump durante dois anos? Que está familiarizado como poucos com a sua estratégia, caráter e pensamento?

A realidade é que não disse nada que não fora há muito apontado entre os críticos mais ou menos independentes nos EUA e por esse mundo fora. O que mais incomoda também é isso. Se não existe nenhuma nuance pública, ela também não existe noutro registo para quem o conhece de perto. What you see is what you get. What you get is what it is. No elaboration neeeded. No nothing.

Sem nuances. Para isso bastaria também ter lido o Fire and Fury. Dessa constatação, importa recordar o essencial: o racismo em Trump está lá desde o primeiro dia, ajudou-o na fragmentação e divisão do país e explicou em parte a sua eleição. As bestialidades que saem da sua boca vêm desde o início da campanha. O dividir para reinar nunca foi disfarçado, mas sim, transmitido em direto, para o exterior e em tom elevado. É por isso que quando segura a Bíblia ao contrário em frente à igreja de St. John enquanto a polícia dispersa a multidão, Trump só causa arrepio a quem desconhece o papel dessas entidades sinistras que são as seitas evangélicas na sua campanha e de outros como ele por esse mundo fora. Bem como o patrocinio avultado para que se mantenham no poder. Ou de como, ao elevar essa Bíblia, Trump dirige-se a outro eleitorado ultracatólico e a quem o simbolismo maior do gesto faz esquecer todo o essencial que está para além da farsa. Ontem e hoje. Por mais estranho e desconexa que seja. Ao contrário do que alguns gostariam numa luta das trevas imaginária em Portugal quando deliram com a suposta imposição da cultura marxista no país, talvez se devesse realmente retirar algo de Karl Marx. Na parte em que se referia à religião como o ópio dos povos. É que em Trump e na sua força eleitoral, certamente que o é e foi. A religião não serve apenas como ópio aqui, serve também como estupidez.

Regressando ao ex-secretário de Estado da Defesa que chega a comparar a ideologia de Trump à ideologia nazi e o acusa de dar ordens aos militares que violam a constituição americana, apresentando esta realidade como causa de um presumível novo processo de impeachment; não posso deixar de questionar-me se, sabendo hoje o que se sabe e com os resultados à vista de todos, os republicanos voltariam a fazer o mesmo nesse processo? Ou será que o atual Presidente norte-americano conseguiu mesmo transformar o partido numa espécie de seita reacionária? A realidade é que o peso político de James Mattis também é acentuado na base republicana e ninguém parece indiferente a isso.

É neste ponto que está hoje a política americana: um general experiente, reconhecido e da mesma base pede para que se evite levar em consideração as palavras e ações do Presidente do país. Que não se faça o que ele sugere, de forma a manter a decência e a restabelecer-se algum do ideal no país.

O cenário já foi pior. O silêncio dos decentes que advêm desta base já não é total e isolado.

Pode ser que venham aí bastantes mais James Mattis a tempo de mexer com a campanha e as bases do Partido Republicano até novembro. A suceder-se, os americanos aguardam-no, os fanáticos exasperam e a Europa agradece. 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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