As letras, humanidades e o vírus: o exercício da liberdade de expressão

Perante uma das maiores, senão a maior crise dos últimos cem anos, que seja esta a oportunidade de criar valor com base numa educação mais humanista e culta. A consciência cultural é liberdade.

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LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO

A covid-19 está a demonstrar como as decisões políticas de cortes nos serviços públicos de saúde contribuíram para o alargamento das desigualdades, especialmente em classes e grupos sociais já marginalizados. Os trabalhadores, os precários, as vítimas da austeridade, as mulheres, a comunidade negra e cigana e os pouco ou nada instruídos. A oferta mediática tem tentado responder à crescente procura por informação de qualidade gratuita. Não é uma questão de retórica, ainda que seja fundamental.

O neoliberalismo, o relativismo cultural e o individualismo egoísta foram portas abertas para a crueza da modernidade. O ensino em Portugal está a domesticar uma sociedade que sacrificará a liberdade em nome de um securitismo que a “História provou ser o caminho errado para a humanidade”. O problema é que, hoje, a História, como disciplina e componente essencial do exercício da cidadania, é posta de lado. Como ramo das Ciências Sociais, temos visto que estas, como um todo, desempenham um papel central no combate à desinformação e exclusão social, antes e após a pandemia. As letras e as humanidades não podem nem devem ser esquecidas, não só pelo seu papel na instrução da sociedade civil, como no restabelecimento de uma sociedade fraterna e solidária.

O audiovisual e multimédia e as artes do espectáculo, sendo ambos subsectores culturais, têm naturezas profundamente distintas. O audiovisual e multimédia é um subsector intensivo em capital com particularidades próprias: os seus produtos são reprodutíveis e transaccionáveis a grandes escalas, em muitos casos exibem não-rivalidade e não-exclusividade no consumo. Portugal é relativamente competitivo neste domínio, em oposição aos restantes, nomeadamente nos livros e publicações. Um estudo conduzido pelo Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais, concluiu que a educação tem um papel fundamental na criação de novos públicos e na sensibilização dos indivíduos para a importância das artes da criação e fruição artística.

Com a proibição de concentração de pessoas e o encerramento das salas de espectáculo, rapidamente o que estava programado foi cancelado e o sector cultural paralisou. Fisicamente parado, num lado, cantores, escritores, pintores e outros artistas disponibilizaram gratuitamente os seus projectos, migrando para o espaço online, combatendo a solidão de muitos portugueses. No entanto, deve ser sabido que a criação artística, o trabalho técnico e os ensaios não são transferíveis para teletrabalho. Não nos podemos esquecer que estes artistas têm de comer e pagar contas. A importância da produção artística passa pela valorização do ser humano, em áreas como a ciência política, as ciências de comunicação, a filosofia e as letras. E, no combate ao vírus, todas elas têm estado lá para nós. Valorizar as ciências sociais e as humanidades é valorizar a liberdade. Valorizar a liberdade é valorizar a cultura. E, claro, valorizar a cultura é valorizar os nossos trabalhadores.

Nos últimos 20 anos, sinais alarmantes na cultura e educação deram a conhecer a diluição das humanidades nos currículos do ensino secundário e universitário. Editores e livreiros tiveram que se adaptar à nova realidade com a tranquilidade de quem carrega aos ombros o peso de uma sociedade adormecida. Insiste-se na crença de que avaliação é educação e formam-se cidadãos alienados, não conscientes. Se a imaginação é desapreciada, nas crianças e jovens, as escolas e as universidades passam a produzir máquinas robóticas de “so-le-tra-ção” e reprodução do conhecimento. “A rir castigam-se os costumes” e o costume tem de o deixar de ser, como diria o dramaturgo Gil Vicente.

Perante uma das maiores, senão a maior crise dos últimos cem anos, que seja esta a oportunidade de criar valor com base numa educação mais humanista e culta. A consciência cultural é liberdade, saber para que serve a educação e a cultura, e porque servem, são passos dados na defesa de um ensino para todos, sem distinção de classe. Há outra curva que temos de aplanar e essa é a curva da exclusão social. A luta contra a exclusão social não pode ser feita sem o movimento anti-propina, a redistribuição da riqueza e o investimento em serviços públicos universais. Educação sem preocupação cultural é o mesmo que liberdade sem expressão. Não faz sentido.

São necessárias políticas de educação e cultura com tradução num Orçamento do Estado robusto. As actividades culturais, sejam elas festivais em massa, mini gigs em bares ou discotecas, como projectos literários e de pintura. Para defendermos a cultura precisamos de liberdade. Sabê-la e exercê-la. Precisamos de reinvestir nos livros e nas letras e de desconstruir a ideia errática de que as línguas e humanidades ou as artes são a fuga à matemática. Precisamos de preservar a história e recordar o que a divergência populista fez no passado.

Quando a pandemia estiver sob controlo, espero que uma coisa fique clara: quem esteve lá para a sociedade civil foi a cultura. Em tempo de pandemia, mas também fora dela, a literatura, a música, a política e a comunicação, são dos instrumentos mais eficientes no combate à solidão. A discriminação das letras e humanidades é a discriminação da educação. Devemos formar cidadãos leitores, informados e críticos. A crítica é a nossa liberdade de expressão.

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