Anti-racismo, 1.º de Maio e saúde pública: uma trilogia

“Não entendo” a razão pela qual a dignidade humana que, e muitíssimo bem, é normalmente reivindicada pelos manifestantes anti-racismo, não parece ter sido defendida na íntegra, pelo menos nalguns casos, pois regras de distanciamento físico, até prova em contrário, foram violadas.

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1. O racismo, a discriminação negativa de pessoas apenas por exibirem coloração de pele x ou y, é um erro ético objectivo, embora admitindo graus: é bem menos grave, embora censurável, um miúdo de 9 anos proferir uma boca racista enquanto dá uns pontapés numa bola com os amigos, do que o repugnante assassinato de George Floyd. E não adianta alegar falaciosamente que se não repreendermos com máxima veemência um acto verbal, presumindo não ser iterativo, de um miúdo de 9 anos naquelas circunstâncias, mais tarde, no quadro de um determinismo implausível, o miúdo transformar-se-á num racista convicto capaz de realmente cometer um homicídio com tal motivação.

2. Se a cor da pele fosse uma propriedade moralmente relevante, então propriedades anatómicas como o tamanho ou a forma das orelhas ou dos mindinhos também o deveriam ser. Mas isto é absurdo. Logo, a cor da pele é uma propriedade moralmente irrelevante. E é justamente por isso que o racismo, tal como outras discriminações moralmente arbitrárias como o especismo ou o etarismo, é um erro moral objectivo. Demasiadas vezes, e infelizmente, grave.

3. Sou anti-racista convicto. Fiquei chocado com a trágica morte de Floyd e não me lembro de, desde puto, ter cometido qualquer acto, verbal ou não verbal, que se possa acomodar em tal tipo de actos ou prática. Mais ainda: apesar de não ter estado presente, identifico-me com a generalidade dos protestos anti-racistas que tiveram lugar um pouco por todo o lado, nomeadamente no sábado, em Lisboa. Excepção feita a actos de puro e injustificado vandalismo que ocorreram, mas não em Lisboa, ou a um ou outro dispositivo comunicacional idiota.

4. Na verdade, o que é profundamente reprovável no racismo é atentar contra a dignidade humana. Ora, é neste ponto que a minha lucidez se começa a ofuscar. Porque:

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Rui Gaudêncio
  1. Se estamos em situação de pandemia, e
  2. Se, e bem, se condenam ajuntamentos irresponsáveis de pessoas – como ocorre, paradigmaticamente, com o clown-trágico Bolsonaro e seus seguidores acéfalos, como ocorreu numa ou outra celebração religiosa no nosso país, em praias sobrelotadas em que o distanciamento físico foi mais centimétrico do que métrico, naquilo que se observa em transportes colectivos nomeadamente na zona de Lisboa e Vale do Tejo, porque a economia santificada (genuflexão!) é intocável, e se se condena as condições laborais e habitacionais indignas em que vivem muitas pessoas, não só na periferia de Lisboa.

Então, “não entendo” a razão pela qual a dignidade humana que, e muitíssimo bem, é normalmente reivindicada pelos manifestantes anti-racismo, não parece ter sido na prática defendida na íntegra, pelo menos nalguns casos, pois regras de distanciamento físico que devem ser observadas neste tempo, até prova em contrário, foram violadas. É que, neste exemplo, a lei da atracção universal dos corpos nem tudo justifica. Será que irresponsavelmente podemos vir a contribuir para um não negligenciável “I can't breathe!” do SNS pelo menos na zona de Lisboa e Vale do Tejo e, pior, para um literal “I can't breathe!” de alguém que possa vir a ser, ainda que indirectamente, internado numa UCI?

Bastaria um só inocente que fosse (tal como Floyd) para eu não entender esta displicência. Porque tipicamente todas estas vidas devem contar e não só as motivações individuais e colectivas estimáveis, como foi reforçado pelas declarações também de Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública. As consequências dos nossos actos e práticas também devem ser ponderadas e são eticamente relevantes. Se o não fossem, os nossos infernos mundanos não estariam repletos de bondosas motivações. E, seguramente, não é este outro lado do espelho que é, por si só, objectável. O que é objectável é tão somente o modus operandi de alguns manifestantes e, sobretudo, dos organizadores, por não terem tido a capacidade de gerir a legítima expressão de milhares de pessoas, ao negligenciarem algumas das previsíveis consequências em termos de saúde pública. Até porque o xeque-mate ao racismo deve implicar inteligência teórica e prática que supere em larga escala o mero ou deficitário voluntarismo, cúmplice de um R(t), que já a 3 de Junho, se situava entre 1 e 1.3, talvez mais próximo de 1.2, e com tendência crescente nesta zona do país. Na verdade, não será apenas com máscaras e álcool gel que este incêndio se controla.

5. No planalto pandémico das incertezas em que temos vivido, assinalo aqui pelo menos uma certeza: a de que organizações responsáveis e socialmente comprometidas são possíveis – o caso da comemoração do último 1.º de Maio, pela minha parte, seria já santificado! Não porque concorde acriticamente com toda e qualquer posição sindical assumida, seja por que central sindical seja. Mas porque, entre outros motivos, a saúde pública e a liberdade política, na reivindicação de direitos laborais fundamentais, se soergueram ao olimpo da vida pública, por agora, desejável. O combate anti-racista merece pelo menos igual tratamento.

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