O que Costa e os outros devem aprender

Como seria saudável para a vida política portuguesa que António Costa fizesse esse esforço para superar-se a si mesmo, adoptando a sua postura no posto de comando do confinamento – e tirando o tapete aos profissionais da crispação e ressentimento político.

Foi quase um coro unânime que saudou a forma serena, decidida e isenta de arrogância como António Costa conduziu o país durante a fase mais angustiante da pandemia, embora repartindo esse mérito com o Presidente da República (o que até serviu para reforçar um necessário sentimento de unidade nacional). Só que a esse estado de graça parece suceder agora o regresso aos rituais da velha política, onde é cada vez mais difícil distinguir a fronteira entre as culpas atribuíveis ao chefe do Governo, cedendo à tentação dos dribles políticos tradicionais, e a procura doentia de motivos de conflito por parte das oposições – incluindo no interior do PS – e através dos media.

Provavelmente, assistimos a uma atracção mútua e fatal dos dois factores, como se cada qual não prescindisse do outro para sobreviver: Costa sem conseguir resistir mais ao apelo dos velhos instintos maquiavélicos e os seus adversários sentindo já a falta do antigo clima de guerrilha para chamarem a atenção e marcarem o território.

Tudo começou com o “lançamento” por Costa da recandidatura de Marcelo, enquanto se desenrolava a comédia de Mário Centeno e do Novo Banco – em que ficámos sem perceber se Costa, absorvido pelo combate à pandemia, se esquecera das “subtilezas” do negócio ou, simplesmente, aproveitou para desestabilizar os meandros secretos das Finanças. Obviamente, neste filme, nada é a preto e branco, o que explica a encenação do reencontro amoroso entre Costa e Centeno.

O apoio a Marcelo foi, entre outras coisas, um pretexto para mobilizar os descontentes do aparelho socialista, fazendo convergir a ala mais à direita (Francisco Assis) com a ala mais à esquerda (Pedro Nuno Santos, cada vez mais de costas viradas para Costa) e promovendo a candidatura de Ana Gomes. Mas o último episódio deste novo folhetim seria, no fim-de-semana passado, a revelação de um “segredo” (e segredos são o que talvez Costa mais goste de cultivar) escondido há mais de um mês: a “contratação” de António Costa Silva como cérebro do plano de saída da crise.

A convergência das reacções contra este “segredo” levou a que, por exemplo, nas páginas do PÚBLICO, Paulo Rangel e Francisco Assis aparecessem esgrimindo os mesmos argumentos e adoptando até uma idêntica sequência narrativa nos respectivos textos. Segundo Rangel e Assis o que está em causa não é a figura de Costa Silva – objecto de encómios mais ou menos floridos – mas as razões e o método que conduziram à sua escolha. Rangel, por exemplo, dar-se-ia por satisfeito que o Governo tivesse deliberado constituir uma “unidade de missão” e Costa Silva fosse o respectivo “encarregado de missão” tendo em vista o tal plano pós covid-19…

Imagine-se então que António Costa, ultrapassando as suas compulsivas tendências para os jogos políticos de bastidores (incluindo o golpe de surpresa no apoio à reeleição de Marcelo) e inspirado pelo seu próprio exemplo na condução do processo de confinamento, preferia a transparência ao segredo ou sabia resistir ao apelo dos seus instintos profundos para viver em confinamento político? Isso corresponderia a uma pequena revolução que obrigaria as oposições a um exercício de argumentação menos primário do que aquele a que habitualmente assistimos (como, por exemplo, o de Adão Silva, do PSD, na última sessão parlamentar), promovendo a substância e a argumentação fundamentada dos debates – incluindo o do plano ainda misterioso de Costa Silva. Como seria saudável para a vida política portuguesa que António Costa fizesse esse esforço para superar-se a si mesmo, adoptando a sua postura no posto de comando do confinamento – e tirando o tapete aos profissionais da crispação e ressentimento político. Tal como todos nós aprendemos com a experiência de nos fecharmos em casa para protecção própria e dos outros, a política portuguesa poderia extrair daí uma lição preciosa – e até “revolucionária” – para enfrentarmos os tempos difíceis que nos perseguem.

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