Além de partilhar hashtags, por onde deve começar quem se queira juntar aos protestos anti-racistas?

Com o #blackouttuesday a gerar tanta conversação sobre que medidas de luta contra o racismo são ou não eficazes, e depois dos protestos do movimento Black Lives Matter chegarem à Europa, perguntámos a quatro associações anti-racistas por onde devem começar os que agora se juntam à luta que eles fazem todos os dias (e há muito tempo).

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PAULO PIMENTA

Por onde deve começar alguém que se queira juntar à luta anti-racista?

“Por si”, resume o Grupo Educar - , em consonância com Jade Rocha, activista de Abya Yala e uma das vozes do Núcleo Anti-racista do Porto: “Neste momento, percebo um grande engajamento de muitas pessoas na luta contra o racismo. É importante para as pessoas que entraram em contacto com a luta entender que isto não é novo. Acho que o primeiro passo é humildade e respeito pelas pessoas que estão lutando contra isso todos os dias.”

“O meu conselho seria, antes de partilhar qualquer hashtag possível, procurar no Google: ‘o que é branquitude?’. Que as pessoas entendam mais o conceito do que é ser-se uma pessoa branca, antes de entender o que é ser uma pessoa negra, porque isso elas nunca vão entender. E, a partir daí, inserir-se na luta anti-racista.”

“No geral e de forma simplificada, é necessário partir da empatia de nos colocarmos no lugar do outro sem isolar e objectificar os casos de racismo através de números e estatísticas interpretadas apoliticamente — e sendo críticos no momento em que decidimos criar mais um projecto para a luta”, escreve o Núcleo Anti-racista de Coimbra. É importante “reconhecer as iniciativas já existentes e a importância de aprendermos com o trabalho já realizado e os erros já cometidos”, acrescenta. E “juntarmo-nos à luta desprovidos de lógicas individualizantes, egóicas e heróicas e partir da humildade de querer entender quais as necessidades reais de quem sofre, e não das necessidades autocentradas de quem se quer juntar”.

Para isto é necessário um processo de “reconhecimento”, dizem os educadores anti-racistas do Grupo Educar. “Reconhecendo o seu lugar na sociedade e as desigualdades e violências históricas; reconhecendo a manutenção de heranças e privilégios por meio de indiferenças e explorações. Repensando consumos, leituras, palavras, relações e valores. Reconhecendo que a luta anti-racista não deve acontecer quando um corpo negro tomba nos EUA, pelo Brasil, em Portugal ou em qualquer parte do mundo. Se esses corpos tombam todos os dias, a luta tem de ser diária. Todas as vidas negras importam, não apenas as que ganham os olhos da comunicação social. A comoção não pode ser selectiva.”

No dia-a-dia, salienta a Djass — Associação de Afrodescendentes, além de “ter capacidade de ouvir”, “é importante estar atento/a à linguagem discriminatória veiculada nas redes sociais e nas caixas de comentários dos jornais, bem como estar disposto/a a intervir e defender pessoas em situações de racismo e discriminação quotidianas”.

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Paulo Pimenta

Quais as acções que têm mais impacto e podem ser causadoras de mudança efectiva?

“Não venceremos o racismo a curto ou médio prazo, pois como sistema de opressão está muito enraizado nas práticas quotidianas das nossas instituições, na forma como pensamos a ‘nação’ e como construímos o ‘nós’ e o ‘outro’. Porém, a utopia é necessária para acreditarmos que podemos viver num mundo onde todas as vidas têm igual valor. E, para isso, as acções de hoje também importam”, incentiva o NAC.

Tratando-se de Portugal, é preciso, primeiro, assumir o racismo estrutural e institucional, parar de negar a História, erradicar a mentalidade lusotropical e defender, realmente, os valores de Abril — nascido em África. Falar sobre o assunto é e gera mudanças”, defende o Grupo Educar. “Recolha de dados étnico-raciais, revisão de manuais escolares, formação de professores, fiscalização laboral, sistema judiciário e de imigração, acessibilidade e representatividade nos espaços de conhecimento e poder, tudo deve constituir um mesmo projecto de mudança. A mudança que se reivindica, não só agora mas há muitos séculos, só será alcançada por meio de várias acções, individuais e colectivas, em simultâneo e em sintonia. ”

A mudança e a transformação não devem estar apenas a cargo de núcleos de activismo anti-racista, mas de uma acção concertada entre a sociedade civil em geral e os órgãos reguladores de poder, sejam governamentais, o sistema judicial, o sistema educativo, os meios de comunicação e formação de opinião pública, entre outros”, responde o Núcleo Anti-racista de Coimbra. “Acreditamos nas acções que trabalhem directamente com as comunidades racializadas num estreito diálogo para compreender as suas principais prioridades e garantir a sua sobrevivência digna e a manutenção dos direitos humanos fundamentais.”

A Djass — Associação de Afrodescendentes, reitera a importância das manifestações que mobilizaram milhares de pessoas este sábado, 6 de Junho, em Portugal, e deixa outros exemplos de acções concretas. As manifestações são extremamente importantes porque mobilizam a sociedade em torno de uma causa; as denúncias veiculadas por activistas e pessoas anónimas; os artigos de opinião nos jornais escritos de forma a desconstruir os preconceitos e negacionismo sobre o racismo presente em algumas esferas da sociedade portuguesa; a forma desconstruída como alguns jornalistas apresentam as notícias; os vídeos e filmagens de actos públicos de racismo e injustiça.”

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Se não tiver dinheiro para doar a campanhas e associações, que outras formas existem de apoiar?

“Existem diversas formas de mobilização no sentido de nos desconstruirmos das nossas heranças coloniais racistas em sociedades lidas como maioritariamente brancas. Isso pode começar por desconstruir a ideia de “apoiar” e “ajudar”, quando de facto este problema é criado por um sistema de branquitude sistémica, que privilegia a vida de determinados grupos sociais em detrimento de outros, segundo o seu fenótipo. Mantermo-nos conscientes desses privilégios e promovermos conversas com amigos, familiares e colegas de trabalho sobre o que aprendemos nesse caminho é fundamental”, escreve o Núcleo Anti-racista de Coimbra.

Participar nas manifestações “organizadas por líderes racializados”, “respeitando questões de representatividade e lugar de fala como essenciais para evitar dinâmicas de apropriação cultural e a relativização das agendas políticas e hierarquias de opressão” é outro dos conselhos.

A Djass enumera: “Ter posicionamento individual anti-racista, ajudando a divulgar o trabalho das associações, ler e aprender mais sobre o os processos de racialização e discriminação de grupos e indivíduos, ter um pensamento crítico e opor-se à criminalização das pessoas racializadas; apoiando petições públicas que combatam o racismo e advoguem pela igualdade racial; exigir uma outra narrativa no plano nacional de leitura, nos currículos escolares e nas redacções dos meios de comunicação social.”

É também muito efectivo poder partilhar o trabalho de pessoas não brancas, indicar leituras de pessoas não brancas e sites não só sobre questões raciais. Eu acho que essa é uma alternativa para poder dar visibilidade para essas pessoas”, diz Jade Rocha.

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Que formas existem de apoiar as associações, activistas, amigos e comunidades que combatem activamente o racismo todos os dias?

O NAC diz ser fundamental “compreender empaticamente o nível de desgaste, frustração e sofrimento” destas pessoas. “E isso passa por não esperar que sejam elas a ter que lidar com a pedagogia e ensinamento sobre a desconstrução de um sistema criado por pessoas brancas para garantir a sua reprodução social; e passa por olhar para os seus próprios privilégios e, mais uma vez, desconstruir a ideia irresponsável de “apoiar” e “ajudar”, porque não existe maior privilégio, neste contexto, do que poder educar-se sobre o racismo sem ter que o sofrer na pele.”

Em jeito de conclusão, uma lista de chamada à acção da Djass: “Apoiar projectos políticos e sociais que tenham o combate ao racismo e xenofobia como enfoque; denunciar propostas políticas racistas; não participar e divulgar campanhas que aumentam o preconceito e estigmatizem as populações racializadas; ter atenção e denunciar os discursos de ódio na internet; opor-se a comentários racistas que criminalizem as pessoas negras, imigrantes e de etnia cigana; participar nas manifestações e iniciativas das associações e seguir suas páginas nas redes sociais; envolverem-se como voluntários e fazer activismo em prol das mesmas.”

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Rui Gaudêncio
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