Dominados pelos gigantes da tecnologia

Nada contra a tecnologia. A questão é ela estar sujeita às regras democráticas e à supervisão pública. E nesta espécie de estado de excepção em que vivemos ninguém sabe bem o que está a acontecer.

Coisas boas e más, prós e contras. Eram assim que acabavam, até Fevereiro, as reflexões sobre redes sociais, cidades inteligentes, biotecnologia, teletrabalho, telemedicina, ensino à distância, tecnologias de vigilância ou comércio e serviços digitais.

Questionavam-se efeitos sociais, desemprego, limites éticos, privacidade, adulterações da informação ou o poder de um punhado de empresas de tecnologia. As dúvidas eram muitas e o debate tinha de ser aprofundado. Mas depois veio a pandemia e tudo mudou.

Retirar os humanos da equação agora é bênção e a tecnologia parece ser a única forma de nos protegermos do vírus. A tendência é algumas experimentações tornarem-se permanentes. Avança-se a todo o vapor para a digitalização da existência sem se pensar muito nos efeitos quanto mais em alternativas. Os sintomas estavam aí. Mas agora tudo se vai precipitando por medo, ausência de ponderação de governos e astúcia das multinacionais tecnológicas.

O presente já é futuro. O lar como unidade de produção, com o doméstico e o laboral, o familiar e o profissional a confundirem-se. Tudo o que é essencial — de hospitais a escolas — é terceirizado a alto custo. Haverá mais telemedicina, 5G, comércio e cultura digital. Caminhamos para um regime de biopolítica, onde comunicações, os movimentos, os relacionamentos e o estado de saúde, serão objecto de vigilância. Tudo em nome da conveniência e da pandemia.

O curioso é que se vinha a assistir a alguma reacção. O Facebook era acossado pelas questões de privacidade e de dados, mas também pela gestão da própria rede – algo que voltou com a polémica entre Trump e Twitter. Surgiram bolhas de resistência às redes, porque criam valor sob a forma de dados, mas os utilizadores não detêm controlo sobre o produto da sua actividade, nem recebem nenhuma forma de compensação pela mesma. Já a Amazon foi forçada a desistir dos planos de construção de uma sede em Nova Iorque e o projecto Sidewalk Labs da Google estava em crise. Tudo isto porque a democracia estava a tornar-se um obstáculo, desacelerando a corrida à inteligência artificial, aos carros sem condutores, à vigilância ou telemedicina. Agora o caminho está livre.

Nada contra a tecnologia. A questão é ela estar sujeita às regras democráticas e à supervisão pública. E nesta espécie de estado de excepção em que vivemos ninguém sabe bem o que está a acontecer. Queremos os nossos dados nas mãos privadas da Google, Amazon ou Apple? Se vai haver um tão grande investimento público em tecnologia, os cidadãos não deveriam deter algum tipo de controlo sobre a mesma? Se a Internet é essencial ela não deveria ser tratada como serviço público sem fins lucrativos? É lícito uma minoria controlar e usar para seu interesse os instrumentos que garantem os direitos fundamentais para a larga maioria? Faz sentido estarmos subjugados por estas empresas transnacionais? É possível trabalhar em novos modelos de distribuição do poder para além dos Estados e destas corporações? Aceitamos, sem avaliarmos os efeitos, esta sociedade da hipercomunicação onde, paradoxalmente, predomina o culto do eu e a ausência de vínculo?

As questões são inúmeras e as respostas não são simples, principalmente em momentos como este onde a ausência de interrogação é a regra. Esta semana a França e a Alemanha lançaram o Gaia-X, uma infra-estrutura de dados, para disputar o controlo da “nuvem” com a Amazon, Microsoft ou Google, e afirmar a “soberania digital europeia”, como foi dito, e acabar com a dependência dos gigantes americanos e chineses. Percebe-se o propósito. Mas não será fácil cumpri-lo. E ele só fará sentido se forem afirmadas outras regras, princípios e modelos, com os cidadãos no centro. Como é evidente o problema não é a tecnologia. São as escolhas políticas.

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