O que me faz falta

Nestes meses, tirando a ida semanal ao supermercado para abastecer o frigorífico e a despensa, comprei apenas duas coisas, pela Internet: um livro e um aspirador.

Não contei os dias. Não sei quanto tempo passou desde que as semanas passaram a ser em teletrabalho e as saídas se reduziram ao mínimo indispensável. Mas sei que Abril se perdeu. Não houve nada de memorável. Um encontro, um abraço, um olhar. Só casa e trabalho, pouco mais, e isso não chega para construir memórias que valha a pena guardar.

Maio já há-de ter algo que se lhe diga. Foi em Maio que voltaram alguns abraços. Um chá partilhado em cadeiras de jardim, uma tarde num pátio cheio de sol com vinho fresco a embalar gargalhadas, o regresso a restaurantes onde nos tratam como velhos conhecidos, abraços sem restrições.

Não contei os dias, mas sei que foram muitos. Os suficientes para poder parar e pensar no que verdadeiramente me fez falta. E perceber que foi muito pouco.

Não me fez falta a rua, embora nunca tenha deixado verdadeiramente de a ter sob os meus pés, porque saía todos os dias, para uma caminhada. Não sinto falta de compras e olho algo incrédula para as imagens de filas de pessoas à porta das lojas que vão reabrindo aos poucos e de onde não tenho a mínima vontade de me aproximar.

Há muito tempo que tenho os armários demasiado cheios de roupa e calçado e não preciso seja do que for. Nada de nada. Só tenho uns presentes para comprar, de pessoas queridas que celebraram aniversários mais vazios de gente e de prendas. Mas vou adiar a compra até que se aproxime o dia de estarmos juntos, quando já não der para esperar mais.

Nestes meses, tirando a ida semanal ao supermercado para abastecer o frigorífico e a despensa, comprei apenas duas coisas, pela Internet: um livro e um aspirador, porque o meu se avariou e precisou de ser substituído. Não precisei de mais nada. Não preciso.

Também não me fizeram falta as viagens, de que gosto tanto, e que me fazem sonhar. Não marquei nada, não tenho planos para marcar nada. Tenho a praia a uma distância curta, toda uma costa para explorar e ir variando de areal, se for preciso, e não preciso de mais. E isto até me surpreendeu um pouco, mas não muito. Porque adoro viajar, mas já há algum tempo que percebi que, havendo tanto ainda para ver, já vi muito, e nestes dias importa-me mais quem está ao meu lado do que o território em que pouso a mochila.

E mesmo os restaurantes onde já comecei a regressar, não me fazem falta. De novo, é bom a partilha à mesa, é bom rever velhos conhecidos e retomar sabores familiares, mas fazer falta é algo que nos dói por não o termos, e nunca me doeu não poder ir a um restaurante durante este tempo.

E chegamos assim ao que verdadeiramente me faz falta. A única coisa que não me faz falta e que me faz toda a falta. As pessoas.

Não sinto falta de pessoas em geral. Do movimento, dos ajuntamentos, de me saber rodeada por multidões. Mas fazem-me falta as pessoas que são minhas, a quem gosto de ouvir falar e que me ouvem a mim. Com quem choro e rio, com quem bebo chá, vinho e cervejas geladas. Senti falta do toque. De poder estar com as minhas pessoas sem pensar em cumprimento de regras, em distância, em deixar os sapatos à porta e em não poder abraçar. Só isso me fez falta e faz ainda, porque não pude abraçar todos os que quero.

Mas já recomecei. Aos poucos já fui matando distâncias. E quero que os próximos dias me tragam as pessoas que ainda não passaram pelos meus braços. Só isso. E se tiverem de passar pelos meus braços sem que nos toquemos de facto, que seja. Mas que possamos partilhar, pelo menos o mesmo jardim, vermo-nos no mesmo plano, sem o raio de um ecrã pelo meio. Interrompermo-nos sem que se percam as palavras, cruzarmos conversas, comermos a mesma sobremesa. Tudo o resto pode esperar.

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