Escuta, Zé Ninguém!

Não é justo crescer com medo de quem tem a obrigação de nos proteger. Não é justo aprender desde cedo que somos os maus, e que aconteça o que acontecer seremos sempre os maus porque ficou assim definido. Não é justo ser visto como uma ameaça pela cor da pele. Não é justo ser filho de um deus menor, Zé Ninguém.

Em 1945, Wilhelm Reich escrevia o Escuta, Zé Ninguém!. Um livro pequeno e de fácil leitura onde se dirige àquele que diz ser o “Homem comum”. “Dão-te o futuro, mas não te perguntam pelo passado”, escrevia Wilhelm Reich.

Sirvo-me desta fórmula e de algumas passagens do livro de Reich para me dirigir a ti. Nação valente e imortal, mas também povo que escraviza, povo que tortura, povo que diferencia. É para ti que num dia estás a conquistar um continente, mas que noutro dia optas por não contar a história dessa conquista. Por medo, fragilidade, cobardia, só tu saberás, Zé Ninguém.

Escuta, Zé! A morte de George Floyd trouxe-nos a certeza de que ignorar o elefante que habita na nossa sala pode ser perigoso. Apenas fará com que o elefante fique cada vez mais confiante e forte, e um dia cause estragos irremediáveis. E há muito que este elefante causa estragos. Floyd não escolheu dar a vida por uma causa, foi-lhe tirada de forma vil e fria por um elefante que durante 8/9 minutos demonstrou o seu desprezo por um ser humano. E se vires com atenção, Zé Ninguém, este desprezo dura anos. Não te incomoda? Trata-se de uma vida humana e da sua dignidade. Trata-se de uma luta de todos contra este elefante que é tão grande que já não dá simplesmente para tentar esconder debaixo do tapete, aliás, já fazemos isso há anos e nunca resultou.

Foto
Memorial de homenagem a George Floyd em Mineápolis, EUA REUTERS/Lucas Jackson

Se, tal como eu, viste as imagens que nos chegaram dos EUA, viste a reação de um grupo que viu nesta morte o fim da linha e decidiu sair à rua e gritar “chega” (que merda escrever isto nos dias que correm!), e reclamar pelo direito à vida! Porque sim, Zé Ninguém, as vidas negras importam. Mais do que dizer que todas as vidas importam, é preciso dizer que as vidas negras importam. Por estarem constantemente sob ameaça. E tu sabes disso. Se não sabes, devias saber.

Tentei ler o que escreveste sobre o assunto, desisti. Fiquei com a sensação de que o racismo e o abuso da autoridade para ti são uma coisa das Américas. Não são. Racismo não é uma coisa americana e muito menos se encerra na morte de Floyd. Ainda este ano vimos imagens de um polícia (agente Canha) numa espécie de combate de jiu-jitsu com uma mulher negra (Cláudia Simões). Não foi do outro lado do oceano, foi aqui mesmo, debaixo do nosso nariz. E tu tentaste defender o indefensável. Porque, de outra forma, seria admitir que o elefante habita na nossa sala. Mas é preciso perder-se o medo do elefante e conversar sobre ele. Porque, escuta, Zé Ninguém! Não é justo crescer com medo de quem tem a obrigação de nos proteger. Não é justo aprender desde cedo que somos os maus, e que aconteça o que acontecer seremos sempre os maus porque ficou assim definido. Não é justo ser visto como uma ameaça pela cor da pele. Não é justo ser filho de um deus menor, Zé Ninguém.

“Que culpa tenho eu, não fui eu que fiz o mundo assim, desigual.” Ouço-te dizer isto. Calma, Zé Ninguém! Isto não se trata de um ataque. Só quero que percebas que serás sempre culpado se escolheres não fazer nada. Se continuares a olhar para mim como sendo uma “coisa” e não alguém digno do teu respeito ou da tua confiança. Não fujas. Fica aqui comigo. Ouve-me. Enquanto resistires em conversar comigo, este elefante vai continuar na nossa sala. E enquanto resistires em mudar, este elefante vai continuar a matar.

Tu és herdeiro de um passado terrível. A tua herança queima-te as mãos, e sou eu que to digo. O futuro da raça humana depende, a partir de agora, da maneira como pensas e ages.”
Wilhelm Reich

Como consegues viver numa sociedade deficiente e estar confortável com isso? Não te questionas, e optas por viver com medo de coisa nenhuma. “Mas agora tudo é racismo”, dizes tu exaltado porque tens dificuldade em reconhecer a minha dor, e a minha luta. Eu sei que te ensinaram que és mais do que eu, mas não és. Sei também que te disseram que serias dono do teu destino e eu não, mas não devia ser assim, Zé Ninguém! Como posso ser eu menos se algumas canções, filmes, atletas de que tanto gostas são feitas por gentes como eu. Feitas por gente de carne e osso como tu. Gostas da minha cultura, mas não gostas de mim. Não encontro sentido nisto. Não estou a atacar-te, também tenho defeitos e falhas, apenas quero que me aceites e, acima de tudo, que me respeites, tal como muitas vezes me forças a fazê-lo contigo. E assim como estou disposto a aceitar a tua identidade, tentando compreender tudo o que ela envolve, aceita-nos tu também tal como somos, em tudo.

Ouço-te falar com frequência num tom pedante sobre a importância dos teus semelhantes reconhecerem o seu privilégio. E dou por mim a pensar, de que me vale que seja reconhecido se quem o reconhece não percebe realmente em que se traduz o seu privilégio? Mas eu digo-te, Zé Ninguém! Ser privilegiado é não ter de lidar com micro agressões diárias que influenciam a tua autoestima, por exemplo. É não teres de te esforçar muito mais porque a tua cor de pele é diferente. É não ser responsabilizado pelo crime das pessoas que têm a mesma cor que tu. É ligares a televisão e sentires-te representado. A tua posição ser vista como universal e o outro ser sempre o “outro”. Não seres sistematicamente lembrado da tua condição (ninguém te lembra todos os dias que és branco, e mesmo que o façam, isso não te faz questionar ou pensar sobre isso). É não teres a necessidade de criar um movimento para te emancipares. É não ser preciso que te lembrem onde é o teu lugar. Ser privilegiado em nada tem a ver apenas com a cor de pele, tem a ver com a ideia que a sociedade tem sobre ti e sobre mim.

Não digas que tens noção do teu privilégio para de seguida te propores a representar-me. Ajuda-me a delimitar o fosso. Não me digas “Sim, estou consciente do meu privilégio. Pude ter uma educação, dinheiro para comprar livros, cultivar-me. Tu não tens nada disso. Lamento. O mundo é feio. Mas como sei mais que tu, vou salvar-te, representar-te”. Não preciso que me representes. Nem que ocupes o meu lugar de fala (Djamila Ribeiro), e que reflitas sobre a minha experiência de vida enquanto objeto. Fá-lo comigo, ao meu lado. Eu sei que nesta era das redes sociais é fácil cair na tentação de dizer coisas e ter quem grite pelo nosso nome, e ficarmos com a sensação de que estamos a fazer a diferença. Não te deixes enganar, Zé Ninguém.

A mudança faz-se lado a lado e não com o homem branco à frente. Porque também foi assim que chegamos até aqui, lembras-te? Por isso é que te digo que é importante estudares História e não apenas Gestão ou Astrologia. A História é importante para reconhecermos os erros do passado e prevenir os do futuro, por isso não tenhas medo de ensinar a verdade às tuas crianças. Porque já o James Baldwin dizia: “Tudo o que os brancos não sabem sobre os negros revela, de maneira precisa e inexorável, o que eles não sabem sobre si mesmos.” Não tenhas medo de conhecer a tua história.

Temo ter chegado ao fim da minha conversa contigo, peço-te desculpa se te ofendi, ou se me exaltei. E se foi através de mim que descobriste ser um Zé Ninguém, lamento. Não te quis diminuir. Mas lembra-te de uma coisa: não queiras um mundo melhor só para ti!

Por fim, deixo-te uma esta Petição criada pela Alexandra Matos. E uma última citação de Baldwin. O resto é contigo.

Petição: https://peticaopublica.com/mobile/pview.aspx?pi=PT96219

“Uma das coisas que mais aflige este país é que as pessoas brancas não sabem quem são e de onde vêm. É por isso que pensam que eu sou um problema. Eu não sou um problema. A vossa história é. E enquanto vocês fingirem que não conhecem a vossa história serão prisioneiros dela. E não há dúvida sobre se estão a libertar-me a mim. Porque vocês não conseguem libertar-vos a vocês. Nós estamos nisto juntos”
James Baldwin, in James Baldwin. Ninguém sabe o meu nome; Fumaça.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção