Dia 58: vamos falar mais de dinheiro

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Querida Filha,

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Quero falar de dinheiro. Vinha a ouvir no carro o teu “Money is Not Our Problem”, a tua canção sobre como o dinheiro não é problema para ti, pela simples razão que não o tens, lol, e pensei que ainda bem que consegues exorcizar através da música a tua “anorexia financeira”. Mas, na verdade, não há nada que nos faça pensar mais em dinheiro do que viver na aflição de não o ter, e o poder que ele nos dá é, exactamente, o poder de não ter de pensar nele a toda a hora.

A ideia não é minha. Li-a hoje nas extraordinárias memórias da Tara Westover — a tua irmã deu-me o livro (Uma Educação) de presente de anos, e estou mesmo a acabar, para depois to passar. É fabuloso. Devorei-o em três dias, o que significa que tu o vais ler em metade do tempo, e só me apeteceu sublinhar todas as frases, sublinhado que esborrataria com as lágrimas que lhe pingaria em cima. Não te conto a história, só te digo que a cada página dei graças a Deus por termos nascido numa família que nos protegeu, sem violência dentro de porta, e que nos mandou à escola. E isto dito por mim, que odiei a primária com todas as forças, e sonhava ficar em casa sossegada com os meus livros, é dizer muito.

Desviei-me do assunto. Volta tu a pôr a conversa nos carris.


Querida Mãe,

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“Uma senhora nunca fala de dinheiro”, não é? Podemos rir dessa frase como se fosse do século passado, mas a verdade, verdadinha é que a ideia ainda flutua na nossa cabeça.

A primeira dificuldade são os preconceitos por trás da ideia do mundo dividido entre “ricos” e “pobres”: se têm um apelido estrangeiro, devem ser ricas, se a pele é escura, são certamente pobres; se são políticos, não só são ricos, como aldrabões, e se a profissão é a de empresário, então escondem os lucros para explorar os trabalhadores. Não é que, nalguns casos, seja mentira. Como acontece com todas as ideias feitas acertam às vezes, mas a margem de erro é tão grande que a única coisa que resulta de tudo isto é uma ideia bipolar sobre o dinheiro: ou é visto como uma coisa horrível, que corrompe ou é a salvação de todos os males.

 O segundo perigo, e deste sei que sofremos as duas, é a ideia de que as coisas verdadeiramente “boas” não devem ser pagas. Que o dinheiro, que nós todos desejamos, é no fundo “sujo”. O escritor Neale Walsch diz exactamente isto num dos seus livros: “A vossa sociedade acredita nisso, daí que os vossos professores ganhem tão pouco e as vossas strippers uma fortuna.” Acreditamos que se algo tem um valor intrínseco alto, então deve ser de graça ou pelo menos barato. É por isso que muitas pessoas que fazem aquilo de que gostam têm tanta dificuldade em cobrar um valor justo pelo seu trabalho.

 A verdade é que o dinheiro não é nem bom, nem mau, tudo depende do uso que lhe dermos, e a grande injustiça não é ter um concorrente dum reality show a ganhar imenso dinheiro por fazer uma estupidez qualquer — ainda que nos possa deixar incrédulos —, o que é grave é ter pessoas que merecem tanto a receberem tão pouco.

Por isso vamos falar mais de dinheiro, vamos destruir estes preconceitos, vamos lutar por uma sociedade mais justa. Vamos deixar de pedir ao designer “só para me fazer um favor, e desenhar-me um logo”; a um músico “só para vir cantar um bocadinho na minha festa, já que até é bom para te promover”; de pedir à senhora da mercearia para “nos fazer um desconto”; ou de não pagar nada a um estagiário, porque “ele até está a aprender” .

Vamos começar por pagar melhor — dentro do que pudermos, evidentemente. Só assim podemos todos começar a receber. 


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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