João Paulo II, segundo Trump

Nenhuma fé pode admitir jamais a sua instrumentalização para fins políticos, ainda por cima quando Trump tem as mãos ensanguentadas. Não foi ele que esteve os mais longos nove minutos da História recente da humanidade no pescoço de um ser igual a todos os demais. Mas é ele que tem estado a asfixiar o pescoço da Estátua da Liberdade.

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Reuters/TOM BRENNER

A visita de Trump ao santuário erigido em Washington em honra de S. João Paulo II, a encenação da bíblia na mão, a deslocação à chamada “igreja dos Presidentes”, é parte do aproveitamento de um plano elaborado em cima do pescoço de George Floyd.

Em queda devido aos erros colossais no combate à covid-19 e ao fraco desempenho económico, o excêntrico Presidente dos EUA quer, a todo o custo, garantir a sua base de apoio.

Uma base para a qual tudo vale ou parece valer desde que os bolsos estejam mais cheios e se paguem menos impostos. E para agradar a essa mesma base, inebriado como está pelo poder, até manda uma aparente refém Melania sorrir. Tudo de fachada, é bom de ver, mas em Trump muita coisa é de fachada.

Essa preocupa-me menos. Pelo contrário, o total desrespeito pelos direitos fundamentais, a afirmação de um poder czarista, a concepção de que um Presidente pode tudo, a peleia que vai mantendo em surdida com o poder judicial, a incapacidade de se colocar nos sapatos do outro, tudo isso é tão inacreditável quanto um caldeirão de pólvora. Trump acena à população, continua a governar pelo Twitter e, ao invés de apaziguar os ânimos, atiça-os.

A bem da sua caminhada para a reeleição, vale tudo. A política mais rasca está na rua desde que este ser assumiu os comandos daquela que se diz ser a primeira entre as nações do mundo livre. Em cima do pescoço de Trump está a inabilidade total em lidar com um caso evidente de violência policial extrema. Um caso criminal e que deve ser tratado como tal, salvaguardando que as forças de segurança não actuam todas desta forma e que o racismo nos EUA é um problema estrutural, como é em tantos outros países.

Que as prisões norte-americanas têm na raça negra a mais representativa, quando não o é na população em geral; que a pobreza atinge de modo mais extremo os negros; que a luta pelos direitos civis tem ainda um longo caminho; que a História deste país teve vários aspectos concretos que o favoreceram – tudo isto são factos notórios. E também que tal não autoriza o saque, a pilhagem, a desordem, a perpetração de outros crimes, tudo a merecer condenação veemente, mas inteligente – novo facto que não carece de alegação ou prova.

E que faz Trump? O contrário, pondo acima do interesse colectivo o individual. Algo de novo sob o sol? Na essência, não. Mas a maldade também conhece gradações, como Arendt nos demonstrou. E esta é pior, quantitativa e qualitativamente. Chegando ao ponto de desafiar as igrejas – a católica e a episcopal – a terem de vir a terreiro, como o fez o arcebispo de Washington, deixando claro que se não pode pactuar com visitas para limpar a imagem de alguém que representa todo o contrário daquilo em que uma qualquer religião pode crer. Dir-se-á que era o mínimo, assim como o posicionamento da Conferência Episcopal daquele país. Ou mesmo a afirmação do prefeito do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Integral, o cardeal ganês Peter Turkson: “Quando se verificam situações que vão radicalmente contra a dignidade humana, que se lhe opõem ou a matam, isso torna-se fonte de grande preocupação”. Porém, em linguagem diplomática, isto é mais do que a maioria dos chefes de Estado tem dito sobre esta desgraçada figura.

Nenhuma fé pode admitir jamais a sua instrumentalização para fins políticos, ainda por cima quando Trump tem as mãos ensanguentadas. Não foi ele que esteve os mais longos nove minutos da História recente da humanidade no pescoço de um ser igual a todos os demais. Mas é ele que tem estado a asfixiar o pescoço da Estátua da Liberdade, como se viu em lucidíssimo cartoon. Apetece lembrar Lopes-Graça e gritar aos americanos: “Acordai!”.

Digo-o e desejo-o ardentemente, mas sem esperança. Por mais que o mundo esteja revoltado – e muito bem –, a dita base de apoio de Trump sairá de casa empunhando arco e flecha, qual Guilherme Tell dos tempos modernos, e continuará, pela força do seu voto democrático, a conduzir os EUA para um caminho de desagregação social, de erigir paredes babilónicas onde se exigiam pontes de vistas largas.

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