O regresso do futebol

Quão deprimente e insípido não teria sido aquele golo do Éder (alguém que nunca vi, mas trato como amigo do peito) se tivesse sido marcado num Stade de France às moscas?

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A Bundesliga recomeçou a 16 de Maio, à porta fechada. LUSA/MARTIN MEISSNER / POOL

Há quem tenha perdido o emprego. Há quem tenha passado a ganhar ainda menos do que a miséria que já ganhava. Há quem tenha visto o seu negócio desabar irremediavelmente. Perante os problemas económicos e sociais que se adivinham, vir falar de futebol parece até um ultraje. Que seja. Esforçar-me-ei para que seja um ultraje bem escrito.

Lamento a falta de sensibilidade a roçar a sociopatia, mas o que me tem feito mais falta durante esta maldita pandemia é estar refastelado no sofá a assistir ao magnifico espectáculo composto por 22 cavalheiros dispostos num tapete verde a correrem desabridamente atrás do bem mais precioso do mundo durante 90 e poucos minutos. É verdade que os canais desportivos têm tentado manter alguma “normalidade” com a transmissão de jogos de épocas anteriores, mas a insistência nesse paliativo, louvável e aprazível nas primeiras semanas, já começa a assemelhar-se àqueles jantares em que o anfitrião continua a insistir nas entradas, quando a única coisa que interessa aos comensais é passar ao prato principal.

Mas agora que o prato principal está quase pronto a ser degustado depois de uma longa e angustiante espera, colocam-se inevitáveis problemas de gestão de expectativas, incontornáveis querelas comparativas entre aquilo a que nos habituámos e o que a realidade tem para nos oferecer.

Se o desejo de ver regressar o futebol pátrio é indesmentível, também o é que da experiência alemã o que fica são sensações e imagens devastadoras: estádios completamente vazios; silêncios lúgubres apenas interrompidos por gritos e obscenidades; golos festejados com a candura de um operista — o que, segundo as regras próprias do “futebolês”, deveria ser um crime punível com o desterro.

Por muito que os clubes, cada vez mais transformados em organizações secretas e opacas, insistam na estupidificação do adepto, quase sempre visto apenas como receptáculo de guerrilhas e conspirações, é ele que dá sentido ao futebol, que lhe dá cor, que lhe dá brilho, que lhe dá loucura.

Quão deprimente e insípido não teria sido aquele golo do Éder (alguém que nunca vi, mas trato como amigo do peito) se tivesse sido marcado num Stade de France às moscas? Teria o Liverpool conseguido aquela recuperação épica se não fosse apoiado, empurrado, alimentado pelo inconfundível público de Anfield? Teria a “Mão de Deus” sido possível se o génio de Maradona estivesse encarcerado no ambiente funerário de um estádio vazio? Como a experiência alemã já nos mostrou, sem as gargantas incansáveis dos adeptos até os jogos de maior cartaz assumem a mediocridade daquelas patéticas peladinhas paroquiais (das quais faço parte) entre craques anunciados e jogadores frustrados.

Os pragmáticos, seguidores dessa filosofia anedótica onde tudo se resume ao resultado e as zonas cinzentas não são toleradas, torcerão o nariz a estas dificuldades e dirão que são defeitos estéticos facilmente ultrapassáveis. Os românticos, idealistas e conservadores, ripostarão, dizendo que para ser assim não faz sentido o regresso do mais belo jogo alguma vez inventado. Num patamar intermédio, onde me incluo, estão os que dizem que o futebol deve voltar sim, mas cumprindo a mesma função de entretenimento dos programas da manhã e dos Big Brother desta vida, porque o futebol a sério é outra coisa e ainda vai demorar a voltar.

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