Dia 56: vivemos mal com dívidas de gratidão?

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Ana,

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Já fizeste uma birra porque te deram um presente fantástico, mas que tu nunca pediste, e que ainda por cima não queres? Mas que por ser espantoso, tens de agradecer e ficar em dívida? Eu já! E é uma sensação horrível, de gratidão e fúria misturadas, que nos deixa envergonhados por nos termos comportado como uma criança.

Queres um exemplo? Imagina que estás perfeitamente satisfeita com o teu telemóvel, que tem a sofisticação suficiente para não exigir de ti mais do que gestos mecânicos, num dia-a-dia de sobrevivência. De cada vez que vês um anúncio que dá conta de um último modelo que faz mil coisas inacreditáveis, suspiras de alívio por não o ter. Aliás, só de pensares em encher o teu cérebro já saturado de informação com o conhecimento que torne possível dar-lhe o uso que o raio do aparelho merece, começas a hiperventilar. E é então que, de repente, eu, o teu pai ou o teu marido, entra-te pela casa adentro com um embrulho lindo, que te põe no colo. Sentes alguma curiosidade, embora muito francamente preferisses que não te dessem nada, mas quando o abres salta de lá exactamente o telemóvel que tens agradecido não ter.

O ofertante olha para a tua cara na esperança de a ver iluminar-se com a alegria que ele próprio teria sentido se lhe tivessem dado aquele mesmo presente. E aí, por muito que disfarces, começa a birra. Mascarada, talvez, porque és uma pessoa muito querida e bem-educada, mas a provocar-te um nó na garganta. Ou, se estiveres mesmo muito exausta, uma birra descarada. Justifica-se que grites: “Mas eu não quero isto!”, mas ao veres a desilusão na cara do outro, sentes-te a menina mais mimada e insuportável do mundo. Se preferires trocar a imagem do telemóvel por uma Bimby oferecida pela sogra ou um cheque com alguns zeros oferecido pela tua mãe, está à vontade. Quero só que percebas a ideia. Estou a delirar ou alguma coisa desta história faz sentido para ti?

Meditando no assunto, percebo o que espoleta a fúria: nas relações, o “deve” e o “haver” têm de estar equilibrados, vivemos mal com dívidas de gratidão que não nos sentimos com capacidade de pagar. Pode ser sinal de falta de humildade, de orgulho, de independência feminina, mas é difícil receber o que sentimos que não podemos retribuir. Pior ainda, quando a dívida é contraída por uma coisa que não desejamos.

Agora aplica isto aos nossos filhos. Será que um adolescente que foi arrancado da cama para um almoço de domingo, e que preferia mil vezes ter continuado a dormir, tem de agradecer o grelhado mega especial que o pai garante que fez de propósito para ele? E a criança a quem é oferecida uma bicicleta, quando ainda está apaixonada pelo triciclo, só porque os pais a querem ver a crescer a toda a velocidade, pode ser recriminada porque lhe volta as costas e não lhe liga nenhuma?

Ih, ih, estou a adorar esta carta, porque me está a fazer pensar em todas as situações em que devia ser permitida a uma pessoa, independentemente da idade, não agradecer — cumprir, eventualmente, mas com um sorriso na cara já não: as aulas de ballet que não quer praticar, a ida para o emprego que odeia mas que todos a asseguram que teve uma sorte incrível em arranjar, a casa de férias dos sogros, que até tem piscina, mas que implica passar os dias a gritar aos miúdos que não sujem os sofás e a aspirar, para não ter que ouvir a recriminação de que não ficou como a encontraram.

Conclusão de tudo isto? Vamos mesmo tentar não dar aos outros presentes que eles não querem. E aceitar as birras que daí decorrem.


Querida Mãe,

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Se sei!!! Confesso que receber presentes sempre me causou uma ansiedade enorme. Enquanto o desembrulho fico a pensar se vou conseguir transmitir bem a minha gratidão e a minha surpresa... Se vai ser suficiente! E sim, já senti no fundo de mim uma irritação enorme por alguém muito próximo me ter dado uma coisa que, primeiro, eu não queria; segundo, era cara!!! Fico a pensar no dinheiro nas aplicações mil vezes mais necessárias que podia dar àquele dinheiro.

Parece-me que o pior destas situações não é o presente em si, mas a ideia de que a outra pessoa não nos conhece. Lembra-se como em adolescente eu ficava tão, tão furiosa quando alguém aí em casa se esquecia de que eu odiava salsichas? Ficava mesmo, mesmo magoada. Como é que se podiam esquecer da comida que mais odeio?!? Acho que é um bocado a mesma coisa... Como é que não nos conhecem o suficiente para saber que não era na daquilo que queríamos receber? Sentir que não nos conhecem dá sempre uma birra, por mais disfarçada que possa ser!

Em relação aos miúdos, é um bom ponto. Tantas vezes achamos que deviam estar gratos e felizes por coisas que nós queremos e que nós é que valorizamos. E pior, levamos a falta de gratidão e de entusiasmo como sinal de má educação. Mas a mãe tem toda a razão, se calhar devíamos ser mais humildes e sermos nós a agradecer o esforço que um adolescente fez em sair da cama e ter vindo, apesar do zero interesse no que se vai passar no museu ou em casa da avó. Não é por isso que devemos desistir de “incentivar/semi-obrigar” a que vá, mas pode ajudar-nos a engolir melhor os grunhidos e a apatia.

Em relação aos presentes fica registado: não oferecer telemóveis xpto à mãe. Confesso que calha mesmo bem, porque com o confinamento não tenho tido a agenda cheia de concertos e os telemóveis xpto são caros!


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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