O futebol frio, cinzento e asséptico chega hoje a Portugal

Quase três meses depois do último jogo na I Liga 2019-20, a competição é retomada com os dois primeiros jogos da 25.ª jornada: Portimonense-Gil Vicente e Famalicão-FC Porto.

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Reuters

Quando Marcelo Rebelo de Sousa se dirigiu ao país a 18 de Março, de rosto fechado e num tom bem mais reservado do que é a sua imagem de marca, o anúncio da declaração do estado de emergência feito aos portugueses pelo Presidente da República veio acompanhado de um alerta: o caminho seria “longo, difícil e ingrato”. Na altura, perante um “túnel sem luz ao fundo”, o regresso da I Liga 2019-20 parecia um cenário longínquo e difícil de se concretizar, mas de forma mais célere do que chegou a parecer possível, o futebol de competição é retomado hoje em Portugal. Porém, à imagem do que foram as primeiras quatro jornadas pós-pandemia na Bundesliga, o “novo normal” do futebol português deverá traduzir-se num espectáculo frio, cinzento e asséptico.

Para já, apenas estão calendarizadas nove das dez jornadas que faltam cumprir – as datas da derradeira ronda apenas serão definidas após a 33.ª jornada -, mas com apenas oito dias sem jogos de futebol de hoje até 21 de Julho, há ingredientes que certamente não vão faltar na ementa futebolística diária. Com FC Porto e Benfica numa luta palmo a palmo pelo título, uma mão-cheia de equipas na disputa por um lugar na Liga Europa e os dois indesejados rótulos de “despromovidos” ainda por atribuir, fora dos relvados as intermináveis e enfadadas discussões sobre milímetros e intensidades regressam dentro de momentos nos espaços mediáticos. No entanto, nem tudo voltará a ser como era.

No início da semana, a Direcção-Geral da Saúde (DGS), pela voz de Graça Freitas, para além de apelar “à responsabilidade”, lembrou que “foi uma luta e uma conquista começar o campeonato de futebol”, pelo que é necessário garantir que “a época acaba em segurança”. Enquanto já se levantam algumas vozes a clamar pelo regresso progressivo dos adeptos aos estádios, a directora da DGS reforçou a necessidade de ser cumprido o parecer técnico enviado à FPF e LPFP, que estipula as condições necessárias para o desconfinamento do futebol.

Das condições que constavam no documento inicial, figurava, por exemplo, a proibição de contactos sociais entre os jogadores e outros elementos que não sejam a família mais próxima e os funcionários do clube; a avaliação clínica diária e a realização de dois testes laboratoriais por semana. A DGS sublinhava, também, que as “competições devem ser realizadas no menor número possível de estádios”. Todavia, ao longo dos últimos 20 dias, essas normas foram perdendo rigidez.

Se, por um lado, a DGS reduziu os testes à covid-19 – agora será apenas um sempre que o intervalo entre jogos de cada equipa não for superior a cinco dias -, por outro alargou o critério de escolha dos estádios ao máximo: todos os clubes que optaram por jogar nos seus estádios, foram autorizados a fazê-lo.

Assim, quase três meses depois de Paços de Ferreira e V. Guimarães encerrarem a 24.ª jornada, o retomar da I Liga acontecerá hoje no Algarve, às 19h, com a recepção do aflito Portimonense, que não vence no campeonato desde 30 de Novembro, ao tranquilo Gil Vicente – será o regresso de Vítor Oliveira a Portimão.

Duas horas e 15 minutos mais tarde - os jogos “fora de horas” em Portugal passarão a ser uma banalidade até ao fim de Julho -, o FC Porto terá que fazer menos 25 quilómetros do que chegou a ser anunciado, mas, teoricamente, o grau de dificuldade do regresso à competição dos líderes do campeonato será maior. Inicialmente marcado para Barcelos, o confronto entre os “dragões” e o Famalicão será na casa da equipa-sensação da prova que, na última vez que jogou no estádio famalicense, derrotou o Sporting, por 3-1, no jogo que ditou a saída de Silas do comando técnico dos “leões”.

Porém, apesar da valia do rival e de duas ausências de peso (Marcano e Alex Telles), uma das conclusões que foi possível tirar das quatro jornadas disputadas na Bundesliga neste mês favorece o FC Porto na deslocação a Famalicão: na era da covid-19, jogar em casa deixou de ser um trunfo. Nas 36 partidas realizadas no campeonato alemão pós-pandemia, os clubes anfitriões venceram apenas oito jogos, enquanto os visitantes conquistaram os três pontos em 18 encontros (50% das partidas). Antes de a Bundesliga ser interrompida, a tendência era a tradicional, com supremacia dos anfitriões: as equipas visitadas tinham mais vitórias (97) do que derrotas (78) nos 224 jogos que tinham sido disputados.

A explicação para esta aparentemente inversão de papéis estará, certamente, na ausência da “kryptonite” com que os clubes se debatiam quando se deslocavam ao terreno do rival. Sem os adeptos, a envolvência do relvado com as bancadas despedidas tornar-se-á cinzenta, o ambiente será mais frio e o 12.º jogador, que por norma favorecia a equipa da casa, deixa de existir. Ganham as equipas visitantes e os árbitros, que sem o ruído do exterior estarão menos pressionados, mas perderá o espectáculo.

Sem abraços e de forma asséptica, o futebol (possível) regressa hoje a Portugal.

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