Vale a pena suar do bigode pela cultura em Portugal

Em uníssono, ouviram-se risos e sessões de karaoke muito pouco abafadas pelas máscaras. A vontade de estar presente foi maior. Foi um público que ansiava por aplaudir e aplaudiu. Aplaudiu muito. No início, no meio e no fim de Deixem o Pimba em Paz.

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Nuno Ferreira Santos

A tão esperada estreia de um espectáculo após a quarentena é, sem dúvida, um dia marcante para a minha vida. Mais do que ver e sentir um espectáculo — que acho digno da palavra “sublime” — fui para conhecer como vai ser o futuro, tal como uma cobaia de uma experiência, da qual ninguém sabe o resultado. Clichés à vista, nem vou inaugurar nem vou ser o último a citar Sérgio Godinho: “Hoje é o primeiro dia do que resto da tua vida.” E que vida vem aí.

O Campo Pequeno como nunca o tinha visto: semi-descapotável, com um vislumbre da lua entre as luzes da cidade e a escuridão. Para esta noite, nem aviões nem estrelas foram chamados a figurar no elenco. Há dias assim. Um Campo Pequeno esgotado, mas longe de rebentar pelas costuras, metade humano, metade covid-19. Quem diria que o “bicho” que esvaziou salas, hoje iria encher metade de uma? E se este “bicho” enche meia sala, o outro “Bicho”, no palco, fazia o que tão bem inventou.

Se estava calor? Sim, algum, mas não tanto que tivesse visto uma pessoa que fosse sem máscara. Nunca a expressão “suar do bigode” fez tanto sentido porque estar de máscara é levar o buço a uma sessão demasiado longa de banho turco. Foi aborrecido ter de estar duas horas com ela, mas não tenho lata para me queixar quando há tantas pessoas cujo ordenado depende de trabalhar com elas. É um pequeno preço a pagar, mas que vale tanto, tanto a pena.

Em uníssono, ouviram-se risos e sessões de karaoke muito pouco abafadas pelas máscaras. A vontade de estar presente foi maior. Foi um público que ansiava por aplaudir e aplaudiu. Aplaudiu muito. No início, no meio e no fim. Das músicas e da conversa, do ritmo e das punchlines. Mais do que um espectáculo, foi um agradecimento público à boa vida de ver cultura ao vivo.

Entretenimento em comédia e música, entre o pimba e o piano, o contrabaixo e o Bruno, todos os músicos e o vozeirão da Manuela Azevedo que deve ter chegado à Estação Espacial Internacional tão afinado como entrou nos meus ouvidos. Foi, literalmente, “música para os meus ouvidos”. A magia dos músicos e artistas foi gigante, o sentido de humor do Bruno continua tão apurado como nos habituou nos últimos seis meses, mas neste dia 1 de Junho havia muito mais a descobrir. O processo: as filas, entrar, sentar, a ordem, a desordem, o respeito? Até nisto nos soubemos tornar incríveis. Não é a covid-19 que nos vai roubar a distinção de “melhor público do mundo”.

Na entrada, muito mais portas abertas que as habituais, mais filas e, em todas elas, o distanciamento social era, de facto, uma verdade. Foi uma resposta de pura e sincera responsabilidade, com respeito e homenagem à cultura que tanto honramos. É um orgulho que emociona, este de poder dizer que não vi defeitos. Ouvi, mas não vi. Como?

Um público inteiro de máscara para se proteger da outra metade e, no meio de gigantes aplausos, ouve-se um assobio? Ai! Quem é que já se armou em esperto e tirou a máscara? Se o fez, foi tão rápido como se atravessa um sinal vermelho, convencendo todos os passageiros que ainda estava verde, ou “verde-tinto”. Aquele semáforo no meio de uma rua sem movimento que só fazia falta em 1994. E mesmo assim, já nessa altura era despropositado.

O meu reparo está feito e em nada apaga a magia desta noite. Se entrasse o Elton John para cantar Can you feel the love tonight?, eu só podia responder que sim, abanando a cabeça para cima e para baixo, extasiado e sem palavras para a beleza que senti. A cereja no topo do bolo, que também existiu, foi a saída mais ordeira e responsável que já vivi. Fila a fila, sector a sector, sem engarrafamentos de qualquer espécie.

Se isto foi um dos testes mais importantes das nossas vidas? Tenho a certeza que sim, tal como acho que, daqui a 15 dias, vamos todos festejar uma pauta de resultados negativos. À covid-19, claro, porque em responsabilidade foi uma goleada.

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