Autarca da Azambuja insiste em cordão sanitário a prédio habitado por famílias de “etnia cigana”

“[O cordão] seria para eles ficarem isolados dentro das suas casas, o que é difícil porque eles têm muitas crianças e andam constantemente na rua”, diz Luís de Sousa. Estão a ser testados 40 moradores de um prédio num bairro social da Azambuja. Associação da comunidade cigana Letras Nómadas diz que declarações do autarca são “inadmissíveis” e “vergonhosas”.

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O presidente da Câmara da Azambuja, Luís de Sousa, insiste que a melhor forma de conter a propagação da covid-19 no bairro da Quinta da Mina será a instalação de um cordão sanitário. Neste bairro social gerido pelo município há, segundo diz o autarca, nove casos já detectados de infecção pelo novo coronavírus — um número distinto do avançado à agência Lusa esta terça-feira pela delegada de saúde local, Judite Catarino, que disse serem seis positivos, em nove pessoas testadas.

Na segunda-feira, Luís de Sousa (PS) explicou que se tratava de uma situação que envolvia nove famílias “de etnia cigana”, num total de 40 pessoas residentes e que não excluía “a necessidade de existir uma vigilância activa destas pessoas, uma espécie de cordão”. Os números não se revelaram, até ao momento, tão alarmantes, por isso o autarca afirma que “se for preciso, [o cordão sanitário] terá de ser só à volta do prédio onde eles moram”.

“Neste momento, não sei os positivos nem os negativos. Amanhã é que serei informado pelas autoridades de saúde como iremos proceder. Temos de ver como vamos fazer, se ficarão no prédio os positivos, se sairão, mas isso quem tem de dizer são as autoridades de saúde. [O cordão] seria para eles ficarem isolados dentro das suas casas, o que é difícil porque eles têm muitas crianças e andam constantemente na rua. E eles têm também de obedecer às indicações que a DGS dá”, explicou o autarca ao PÚBLICO. 

Questionado sobre a razão pela qual decidiu divulgar a etnia das pessoas infectadas, o presidente da câmara disse que moram neste bairro, construído ao abrigo do Plano Especial de Realojamento (PER), “famílias de etnia cigana” e outras “famílias normais como nós”. Por agora, são as famílias as ciganas que estão a ser testadas “porque, para já, foram só elas que deram positivo”. “Se não me falarem de etnia cigana eu não digo, mas também não tenho problemas nenhuns em dizer que são famílias de etnia cigana. Eu não sou racista, sou muito amigo deles todos e eles de mim. Temos aqui uma amizade estreita”, sublinhou. 

A possibilidade de se estabelecer um cordão sanitário em torno de um prédio onde habitam famílias ciganas, já motivou uma reacção do vice-presidente da associação da comunidade cigana Letras Nómadas: “inadmissível” e “vergonhoso”. “Um autarca, do PS, com uma enorme responsabilidade a querer fazer um confinamento especial a um prédio, no meio de um bairro social, é vergonhoso”, disse Bruno Gonçalves ao PÚBLICO.

“Há pessoas que não cumprem [as regras de convivência social] sejam elas ciganas, negras, sejam elas quem forem. Existem em cada comunidade pessoas que não cumprem, mas isso não é próprio de uma comunidade nem de um grupo”, lembrou o dirigente associativo, sublinhando que não se pode avançar para soluções deste tipo só por se tratarem de “pobres ou de grupo minoritário”.

ARS rejeita implementação de cordão sanitário

Sobre a questão do cordão sanitário ao prédio ou mesmo ao bairro, o delegado regional de saúde de Lisboa e Vale do Tejo, Mário Durval, reiterou à Lusa que a implementação desta barreira implica “ajuizar a quê, em que espaço e quando”, sublinhando que “não é como quem receita um comprimido, tem de se analisar as situações”. E lembrou que, face ao modelo de infecção e à forma como se está a propagar, deverão ser as pessoas a ser isoladas, insistindo que “não há necessidade” de implementar um cordão sanitário.

“Se eles [os infectados] obedecerem tudo bem, não há necessidade. Se não obedecerem terão que ser as autoridades de segurança a pôr isto em prática. Falei no cordão sanitário como a última coisa a fazer-se porque, sejam eles de que etnias forem, andam por aqui e por ali e podem transmitir o vírus. E isso não pode ser”, frisa Luís de Sousa. “Se o senhor doutor Mário Durval me garantir que tudo isso corre bem, eu estou do lado dele, mas tenho sérias dúvidas de que depois de conversarmos e de eu lhe explicar aqui algumas situações... ele com certeza que será da mesma opinião do que eu”, acrescenta. 

Segundo o autarca, os restantes habitantes do prédio — mais 31 — serão testados durante a tarde desta terça-feira. Mas o objectivo é alargar o diagnóstico a todos os moradores do bairro da Quinta da Mina, que são cerca de 140. 

Para quarta-feira, avançou o autarca, está agendada uma reunião entre a câmara, o director da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo, Luís Pisco, e o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, que está a coordenar a situação da pandemia da covid-19 na região de Lisboa e Vale do Tejo.

Quanto ao foco de infecção detectado na plataforma logística de Azambuja, onde foram identificados quase 180 casos positivos da doença, entre os cerca de 8500 trabalhadores de 230 empresas, o presidente da câmara diz-se “tranquilo”. “Mais ou menos está tudo controlado. A nossa preocupação maior é aqui o bairro. Nas empresas continuam os testes. Neste momento estou tranquilo. As coisas não têm evoluído para pior”, notou.

Referência à etnia deve ser evitada, diz Governo

Apesar da determinação do autarca socialista de Azambuja, o secretário de Estado e também coordenador da Região de Lisboa e Vale do Tejo, Duarte Cordeiro, vincou que “deve ser evitada qualquer referência à etnia ou religião quando falamos de doentes covid-19” para que não haja “qualquer estigma em relação à população infectada”.

Em declarações ao PÚBLICO, o secretário de Estado afastou também a hipótese de avançar para um cordão sanitário, como defende o presidente da câmara de Azambuja, e lembrou que essa hipótese foi já descartada pelo delegado regional de saúde de Lisboa e Vale do Tejo, Mário Durval.

“Quando existe algum tipo de dificuldade no confinamento, é essencial responder com uma vigilância mais apertada por parte das autoridades e adoptar medidas específicas, de articulação entre a saúde pública, a segurança social e as autarquias”, contrapôs, sem deixar de assinalar a sua preocupação com o aumento dos casos. “Estamos, obviamente, preocupados com a situação e por isso temos vindo a articular com os autarcas o reforço e apoio às respostas de proximidade. Além disso, estamos a trabalhar preventivamente, com a realização de testes em sectores que registaram pequenos surtos, bem como aqueles que registam uma elevada rotação de trabalhadores”, relatou. com Ana Cristina Pereira e Liliana Borges

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