Consultas de “primeiros socorros psicológicos” já ajudaram 600 pessoas

Plataforma de vídeo-consultas gratuitas para apoio psicológico já deu mil consultas. Utentes referem sentir medo ou ansiedade e preocupação com o futuro.

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Rui Gaudencio

“Como está? O meu nome é Sofia.” É assim que a psicóloga começa as suas consultas. Apresenta-se, procura perceber como a pessoa que está do outro lado do ecrã gosta de ser tratada e explica sempre de forma clara o objectivo do projecto, que “são primeiros socorros psicológicos”.

O acalma.online é uma plataforma de vídeo-consultas gratuitas para apoio psicológico, criada pela Casa do Impacto - um hub de inovação e empreendedorismo social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) – com duas Starups ligadas à saúde mental. “Pensámos que o isolamento social ia gravar as questões de saúde mental no geral. Montámos o acalma.online em praticamente dez dias, desenvolvemos marca, adaptamos plataforma existente e conseguimos agregar quase desde o início cerca de 50 psicólogos voluntários. Agora temos 100”, explica Inês Sequeira, directora do departamento de empreendedorismo e economia social da SCML.

Desde o dia 3 de Abril, quando ficou activo, até à semana passada, a plataforma já somava 1000 consultas a 600 pessoas. Um número de Inês Sequeira considera “grande”, já que a divulgação foi reduzida. Mas isso não limitou a procura de ajuda, nem de portugueses a viver no estrangeiro. A responsável salienta que a plataforma traz uma abordagem diferente de outras ofertas que existem, “porque são consultas de modelo de intervenção em crise”.

“A ideia é ensinar a pessoa que procura ajuda a conseguir ferramentas para lidar com o que estão a sentir”, adianta, referindo que o objectivo foi ser também complementar ao apoio psicológico que a linha SNS 24 passou a oferecer. Já fizeram uma primeira avaliação ao projecto com dados recolhidos até ao dia 27 de Abril de 63 respostas de 59 pessoas apoiadas (quatro fizeram mais do que uma consulta) ao inquérito de satisfação. Destas, 68% são mulheres, 62% tem o ensino superior e 64% são empregados por conta de outrem ou por conta própria. A média de idades foi de 39 anos.

“Tivemos muitos jovens a aderir. Em termos de crise económica, como é nas grandes crises, o maior impacto está a ser nos jovens. São muitas vezes os recém-licenciados ou as pessoas que estão há pouco tempo no mercado de trabalho que são mais precários. E é uma faixa etária que tem muita pressão, porque começou a ter filhos, várias coisas para pagar e a questão financeira preocupa-os muitos, a incerteza do futuro”, refere Inês Sequeira.

Perguntaram aos utentes para descrever, numa escala de 1 (nunca) a 5 (sempre), em que grau cada problema — medo ou ansiedade, tristeza, preocupação com o futuro, dificuldades de adaptação ao contexto profissional actual, isolamento social, dificuldades nas relações familiares e outro problema — o incomodou durante a última semana.

“O conjunto destas dimensões resulta num sistema de scoring de gravidade com quatro intervalos e um máximo de 35 pontos. A maioria das pessoas (66,7%) situa-se no nível moderado, seguidas do grupo com diagnóstico grave (20,6%), tendo menor expressão os dois níveis com menor gravidade da escala, o nível leve (11,1%) e o normal (1,6%)”, conclui o relatório.

O peso dos sintomas tem pouca diferença: medo ou ansiedade com 16%; preocupação com o futuro com 16%; isolamento social com 15%; tristeza com 14 %; dificuldades de adaptação ao contexto profissional actual com 14%. Em relação à categoria outros problemas, os medos relacionados com questões emocionais e incertezas relacionadas com finanças, problemas laborais, aproveitamento escolar foram os mais importantes.

As mulheres apresentaram uma média de gravidade inferior à dos homens, assim como as pessoas com maior nível de escolaridade em relação às que têm menos habilitações. Em relação à situação laboral, foram os desempregados e os estudantes que apresentaram níveis mais graves.

Mistura de sentimentos

Sofia Pais, psicóloga há quase 19 anos, está no projecto desde o início. Sentiu, quando a pandemia impediu as consultas presenciais no sítio onde trabalha, que tinha de estar na “linha da frente”. “A experiência tem sido espectacular”, assegura, explicando que as consultas duram 45 minutos e não existe um limite de sessões. “As pessoas começam a perceber que olhar para a saúde mental delas é muito importante.”

A maior parte das pessoas que chega às consultas não tem antecedentes de problemas de saúde mental. “Foram apanhadas num sentimento de ansiedade, com perturbações do sono, assustadas porque não sabiam o que se estava a passar com elas; precisavam de validar que o que sentem é normal e que é um momento de adaptação”, diz a psicóloga. Sempre que se trata de uma situação em que acha que é preciso outro apoio há um encaminhamento para uma resposta mais adequada.

“As coisas misturam-se muito. A incerteza, o receio pelo futuro, a ansiedade, o burnout provocado pelo excesso de tarefas”, diz Sofia Pais, referindo que a preocupa muito o desconfinamento. “Estamos a desconfinar sem preparação para a realidade que temos de viver, de usar máscaras, de manter o distanciamento social. Somos de afectos”, aponta, mostrando-se satisfeita pelo facto de a pandemia ter trazido a saúde mental mais para a ordem do dia.

Agora, afirma, “é preciso não deixar cair esta tónica”, porque são muitas as pessoas da linha da frente que vão precisar de apoio. Em relação ao projecto, diz que “faz todo o sentido continuar” e é nessa fase que a Casa do Impacto e os parceiros da plataforma estão: perceber como pode ser financiado de forma a continuar.

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