O Daesh em Moçambique

A população local precisa de sentir que o Governo tem capacidade para garantir o fornecimento de bens e serviços na região. De outra forma, Cabo Delgado poderá ser uma espécie de delta do Níger, com esteróides jihadistas e total interesse do Daesh. Parece que a Frelimo se esqueceu da sua experiência de subversão armada.

Desde 2018 que o Daesh está no Norte de Moçambique, em Cabo Delgado. Ultrapassado o estado de negação, o governo reconheceu publicamente este facto. Não é suficiente. O combate à insurgência jihadista não tem sido eficaz. Pois, é preciso muito mais que uma mera acção militar na erradicação deste tipo de ameaça. Os ataques aumentaram quase 40% nos últimos dois meses. Além disso, a presença de mercenários russos e sul-africanos complicou ainda mais as coisas. São demasiado alheios à realidade do terreno insurgente. Os russos, que já se foram, têm o hábito de tchetchenizar estes problemas. E a presença sul-africana pode dar uma ideia de ingerência sobre Maputo.

Causas

Há uma gramática comum na insurgência jihadista, nomeadamente em África. Ela não nasce do nada. Parasita ressentimentos autóctones contra o poder central. Catalisa-os numa identidade e depois dá-lhes estrutura na forma de sublevação islâmica. Vemos isto no Burkina Faso, no Mali, na Nigéria, na República Democrática do Congo ou na Somália. Agora, também em Moçambique.

Para percebermos as causas são muitas as variáveis a equacionar.

  • A étnica: a maioria dos atacantes são mwani, um grupo étnico que tem um histórico de conflito contra os macondes, a etnia dominante na região.
  • A geográfica: Cabo Delgado é um ponto central para três tipos de redes – comercial, contrabando e de grandes fluxos migratórios provindos da Somália e da região dos Grandes Lagos, através da Tanzânia, em direcção à África do Sul. Pemba, a capital, está a 2600 km de Maputo (a mesma distância entre Lisboa e Hamburgo).
  • A religiosa: por pressão policial, os jihadistas quenianos próximos ao al-Shabaab somali moveram-se para a região de Kibiti, na Tanzânia, próxima de Moçambique, na fronteira Norte. Em 2015 atravessaram o rio Rovuma e instalaram-se em Cabo Delgado, uma região maioritariamente muçulmana.
  • A política: é uma região onde acção do Governo não é muito efectiva e os muçulmanos se sentem marginalizados, sobretudo os mwani (cuja lealdade à Renamo os afastou do poder central liderado pela Frelimo). Tudo isto ajuda a um discurso islamista anti-Estado entre os jovens.
  •  A socioeconómica: Cabo Delgado, uma zona muito rural, é a província mais pobre de Moçambique, com índices de desemprego elevadíssimos entre os jovens. Mas as recentes descobertas de hidrocarbonetos internacionalizaram a região e geraram muitas expectativas. Contudo, os locais não viram grande benefício nesta transformação.

Consequências

Estas variáveis – apontadas sumariamente – contribuíram para o crescendo do movimento, que em 2017 teve o seu ponto de inflexão. As origens remontam a uns anos antes. Foi quando alguns jovens do Conselho Islâmico de Moçambique começaram a desenvolver uma nova leitura e prática do Islão. Surgiu assim uma espécie ramo dentro deste Conselho, chamado Ansaru-Sunna. Construíram novas mesquitas e passaram a pregar uma forma mais estrita do Islão.

Dentro deste espectro islamista surgiu um outro grupo, mais activista e radical, que se tornou conhecido localmente como al-Shabaab. Tornaram-se oposição ao Estado central. Daí, até à violência armada, o passo foi curto. Inspiraram-se no Daesh e começaram a ser denominados por Ahlu Sunnah Wa-Jamo. Em 2018 juraram lealdade a al-Baghdadi. No ano seguinte passaram a integrar uma das ramificações da sua organização jihadista – a da Província Centro-Africana. O ano de 2020 foi-lhe prolífico: chegaram até cerca de 100km de Pemba, com cerca de 150 mil deslocados e mais 350 mortes em três anos.

No início as operações eram muito rudimentares. Com catanas e apenas uma dúzia de kalashnikovs instalavam-se nas aldeias, roubavam o que podiam, queimavam casas e executavam quem se lhe opunha. Porém, a partir de 2019, pelas armas obtidas em emboscadas às forças de segurança, os ataques sofisticaram. Ainda assim, para já, não conseguem manter território: optam por empregar tácticas de ataque e fuga. Até o momento, também não se verificou grande capacidade na fabricação de dispositivos explosivos improvisados, nem o recurso a atentados suicidas (uma característica base das operações jihadistas, sejam na Somália ou na Nigéria).

Abordagem

Com o tempo, os objectivos operacionais do grupo mudaram. Os insurgentes demonstram mais sofisticação, confiança e capacidade de planeamento. Já não estão tão focados na população civil. Atingem as estruturas do Governo e as forças de segurança. Ou seja, passaram a seguir uma abordagem de conquista da população local, articulando sabiamente todas as variáveis referidas anteriormente. E, numa dialéctica típica da acção subversiva, procuram substituir-se ao Estado. Já não têm oposição política e religiosa, por isso focam a atenção operacional para outro lado. É uma estratégia há muito usada por grupos jihadistas em vários teatros.

Mas as acções puramente militares não são suficientes para debelar esta ameaça. Para mais, há relatos de excessos de violência e de boicote aos media. Isto só abona em favor dos insurgentes: aumenta-se a desconfiança em relação ao poder central, cria-se lastro para recrutamento e margem para continuidade da luta.

Maputo precisa desenvolver uma estratégia de contra-subversão que considere as razões para estes jovens abraçarem a violência armada. Em paralelo à reacção armada, é preciso bloquear os elementos catalisadores – que são profundamente sociais. Só assim se corta o mal pela raiz. Para tal, a abordagem tem de ser ampla e considerar vários actores – militares, forças de segurança, intelligence, vários ministérios, sociedade civil, entidades religiosas e, naturalmente, as multinacionais que operam na região. A cooperação internacional deverá incindir essencialmente em formação aos militares no terreno.

A população local precisa de sentir que o Governo tem capacidade para garantir o fornecimento de bens e serviços na região. De outra forma, Cabo Delgado poderá ser uma espécie de delta do Níger, com esteróides jihadistas e total interesse do Daesh. Parece que a Frelimo se esqueceu da sua experiência de subversão armada.

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