Pandemia ameaça os avanços alcançados no desporto feminino

O regresso da Bundesliga é o oásis no deserto. A pandemia da covid-19 pode vir a provocar uma crise profunda em todo o desporto de competição praticado por mulheres.

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O futebol feminino regressou na Alemanha, mas na esmagadora maioria dos outros países europeus está parado DR

Treze dias depois de a Bundesliga ter sido pioneira no desconfinamento do futebol europeu de elite praticado por homens, a principal competição de futebol feminina alemã retomou ontem a competição, com a realização das duas primeiras partidas da 17.ª jornada. Porém, ao contrário do que acontece no futebol masculino, onde a Alemanha servirá de gatilho para o regresso de vários outros campeonatos na Europa, na variante feminina o reinício da Bundesliga é o oásis no meio de um deserto que ameaça provocar uma crise profunda originada pela pandemia da covid-19 não só no futebol, mas em todo o desporto de competição praticado por mulheres.

A paragem de quase três meses não trouxe novidades. Depois de terminar as 16 primeiras jornadas da Bundesliga feminina com 46 pontos conquistados em 48 possíveis, o Wolfsburgo de Cláudia Neto – a internacional portuguesa não foi utilizada – continuou a passear no campeonato alemão e, para não variar, goleou ontem o Colónia, por 4-0. As tricampeãs germânicas têm uma média de 4,5 golos por jornada.

Todavia, se no pós-pandemia a supremacia do Wolfsburgo na Bundesliga mantém-se e é inquestionável – são 11 os pontos de vantagem sobre o Bayern Munique -, no resto do mapa europeu os estragos provados pela covid-19 no futebol feminino são incomensuráveis e prometem deixar marcas profundas.

Em Portugal o campeonato foi cancelado a 8 de Abril e, oficialmente, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) não avança com uma data para o arranque da época 2020-21. A opção portuguesa foi a regra onde a Alemanha é a excepção: França e Holanda também optaram pelo cancelamento; em Espanha a época foi interrompida e o Barcelona declarado campeão. Havia, porém, ainda uma luz ao fundo do túnel em Inglaterra, mas no início da semana a federação inglesa anunciou o final de todas as provas que organiza com “efeitos imediatos”.

Risco de “retrocesso de décadas"

Segundo um estudo da Universidade de Portsmouth, esta paragem pode ser o prenúncio de um retrocesso no desenvolvimento do futebol feminino e Beth Clarkson, principal autora da análise, alerta que “dada a desvalorização histórica do futebol feminino, existe o perigo de que os recentes avanços sejam perdidos” e haja agora um retrocesso “de décadas”.

O estudo da Universidade de Portsmouth vai de encontro com a tese defendida por Isabel Cruz, vice-presidente da Associação Portuguesa Mulheres e Desporto (APMD). A dirigente associativa concorda que o futebol em Portugal, com “o marketing a funcionar”, estava “a ter uma visibilidade maior”, reconhecendo o mérito da actual direcção da FPF, que trouxe “mudanças” positivas.

Isabel Cruz recorda que o futebol “jogado por raparigas” em Portugal esteve “durante dez anos sem selecção”, numa época em que tinha “das melhores jogadoras da Europa”. Alertando que isso também aconteceu, por exemplo, com o basquetebol e andebol, Isabel Cruz lembra que essa estagnação “coincidiu com uma época de crise” nos anos 80, tal como agora.

Numa altura em que “surgem problemas em todos os sectores da sociedade”, o desporto “não vive numa bolha isolada”, por isso, a vice-presidente da APMD diz ao PÚBLICO que “é evidente que haverá um impacto” da pandemia no desporto, sendo que “quando há menos dinheiro nos clubes, as primeiras a irem à vida são as equipas das raparigas”.

Considerando que o que pode estar “em causa é a continuidade da actividade”, “mesmo no alto rendimento”, Isabel Cruz refere que a maior parte dos clubes desportivos “vivem ainda, pelas suas características e limitações económicas, do voluntariado. Das pessoas, sejam jogadoras, treinadores ou seccionistas, que não recebem um tostão. Fazem-no por amor à camisola. Não havendo condições económicas…”

Menos praticantes, menor qualidade

A dirigente recorda que o “único sistema de competição que existe em Portugal é a prática desportiva federada, que é caríssima pelo custo da inscrição, do seguro, do aluguer das instalações desportivas, das deslocações. É uma coisa brutal e, infelizmente, é o sistema que temos e que os clubes não aguentam”. Por isso, como “quem suporta as equipas de base são as famílias, que pagam impostos também”, Isabel Cruz mostra desconforto pela falta de apoios oficiais e deixa uma pergunta: “Porque é que as despesas no desporto escolar não estão no Orçamento do Estado?”

Em tempos de crise, o custo do desporto federado “muito inflacionado” terá, segundo Isabel Cruz, efeitos mais nefastos “nas equipas de raparigas”, onde o “nível de praticantes federados é diminuto”. “Há o risco de uma redução ainda maior do número de praticantes seniores”, o que terá repercussões na qualidade das selecções nacionais das várias modalidades.

Com o regresso da competição no futebol feminino apenas na Alemanha, “um dos países que tem mais jogadoras inscritas” e onde “a necessidade de voltar ao jogo deve estar relacionada com os compromissos com os patrocinadores”, Isabel Cruz antevê o regresso da competição em Portugal, deixando críticas ao alargamento da principal Liga feminina, que passará de 12 para 20 clubes, anunciado pela FPF: “Acho que a época ficará demasiado longa para o que as equipas podem treinar. Os clubes médios já estão a protestar e foi uma decisão tomada de cima para baixo, provavelmente apenas com a consulta dos três principais clubes.”

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