Como seríamos cuidadosos se soubéssemos quais são as nossas últimas despedidas

Não seria tão bom se soubéssemos quais são as nossas últimas despedidas? Não seria bom termos o conhecimento suficiente para saber que aquela seria a última vez que veríamos algum familiar ou algum amigo ou que se iria passar muito tempo até que o pudéssemos voltar a ver?

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Dizia a minha avó, do alto da sua sabedoria, que “adivinhar é proibido”. Dizia isso sempre que algo na vida lhe corria menos bem, fosse um acontecimento tão grave como o derramar do leite para fora do fervedor, depois de ferver, ou algo bem mais grave como a morte de algum ente querido. Não dizia isso de um modo entristecido, como quem verifica a impossibilidade de algo que até gostaria de ter. Muito pelo contrário, com o pragmatismo que lhe era inerente, apenas constatava esse facto: não podemos adivinhar o futuro e ponto final. É claro que desde sempre teve conhecimento de “bruxas”, cartomantes, ciganas que lhe quereriam ler a sina, quando ia a alguma feira. Contudo, nunca lhes deu qualquer tipo de atenção e muito menos qualquer tipo de crédito. Portanto viveu com a certeza que adivinhar o futuro é impossível pelo que tínhamos de viver um dia atrás do outro com essa certeza, esperando que ele (o futuro) fosse doce e agradável para nós.

Eu, como boa neta que sou, herdei algum do seu pragmatismo e também não faço fé na gente que apregoa conseguir prever o futuro. Basta um olhar mais atento a todos os tarólogos, astrólogos e outros que tais que previram que 2020 seria um ano fabuloso, pelas mais variadas razões! Veja-se, cinco meses passados, o quão fantástico está a ser 2020! Fabulosamente diferente está a ser, sem dúvida. Inesquecível também será, de um modo geral, para todos aqueles que o viveram. Agora, de bom, este ano tem pouco ou nada e penso que consigo falar, de um modo geral, pela voz de todos. E é no meio desta pandemia que penso: “Não seria tão bom podermos adivinhar ou até mesmo, apenas, vislumbrar o futuro?”

Tal como referi antes, nunca quis muito saber o que o futuro me reservava. Pensava que se o meu destino era passar por muitas provações, ou sofrer algum tipo de fatalidade, preferia não saber disso de antemão. Sou bem mais de enfrentar o “um dia de cada vez e logo se vê o que ele nos traz” do que propriamente preparar-me para o pior e esperar pelo melhor. Mas, o que quero dizer com ser bom adivinhar o futuro, tem mais a ver com o que se relaciona com os outros. Não seria tão bom se soubéssemos quais são as nossas últimas despedidas? Não seria bom termos o conhecimento suficiente para saber que aquela seria a última vez que veríamos algum familiar ou algum amigo ou que se iria passar muito tempo até que o pudéssemos voltar a ver, fosse por que razão fosse?

A verdade é que esta pandemia trouxe-me, para além de muitas outras coisas pouco positivas, o medo de perder pessoas e de não me ter despedido condignamente delas. Trouxe-me a terrível sensação de que a presença das pessoas me faz falta, ainda que as veja tantas vezes através de um ecrã. Preciso do toque, do beijo e do abraço, preciso das conversas tontas e das gargalhadas sem delay. Penso muitas vezes que se soubesse que iria passar tanto tempo sem os ver teria ido visitar os tios, os primos, teria almoçado e/ou lanchado com eles, ter-lhes-ia dado um abraço apertado e poderia ter-lhes dito que me iria fazer falta a sua presença. Se soubesse que iria passar tanto tempo sem ver os amigos que considero essenciais ao meu bem-estar teria organizado uma megafesta com todos aqueles que pudesse para lhes dizer “até já”, teria feito aquela pequena viagem que tanta vez adiei para visitar aqueles a quem há tempos prometia uma visita. Talvez esses comportamentos tivessem trazido gratas recordações que ajudassem, neste momento, a preencher o vazio que se vai instalando nestes dias de teletrabalho e de parco contacto humano.

Há que assumi-lo: todos os dias morrem pessoas pelas mais variadas causas. É uma verdade inegável. Mas a covid-19, com as contagens diárias de novos infectados e a informação diária dos que faleceram “às suas mãos”, torna esta verdade muito mais presente. E é por esta presença cada vez mais fixa na minha mente que penso que se tivéssemos conhecimento do futuro poderíamos acautelar-nos e dizer às pessoas que nos são caras que são, efectivamente, importantes nas nossas vidas, o quanto as queremos, o quanto a nossa vida ficaria vazia sem elas. Não perderíamos a oportunidade de dizer que as amamos, que fazem parte da nossa existência e que são elas que adicionam colorido à nossa vida.

Aqui chegados, penso: não abraçámos, não olhámos nos olhos das pessoas enquanto anunciávamos que elas são parte de nós, não nos despedimos de forma condigna de muita gente que deixámos de ver por muito tempo. Mas tudo pode ser visto por dois lados: um mais negativo e outro mais positivo. E, depois de matutar sobre tudo isto, pensei no lado positivo. E o lado positivo é que a covid-19 nos fez tomar consciência de que a vida, que damos por adquirida, pode mudar, dar uma volta de 180 graus quando menos se espera. Portanto, assim que nos for permitido, não poderemos deixar para amanhã os beijos que queremos dar, os abraços que sentimos vontade de oferecer, as visitas que queremos fazer.

Não conhecemos o futuro, mas, mais do que nunca, sabemos que ele pode não ser o que pensamos e vislumbramos. E é por essa certeza que temos de pensar que não podemos deixar um aconchego, um beijo, um carinho, um “fazes-me falta” para o dia seguinte. Há que viver hoje, viver o amor e os sentimentos positivos, traduzi-los em gestos para aqueles que amamos, porque o amanhã pode já não existir. Hoje, mais do que nunca, temos essa ideia presente.

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