Covid-19, blockchain e moeda digital

Afinal, o que trouxe de bom para a economia a existência de criptomoedas? Ao servirem como prova-de-conceito, à escala mundial, do blockchain e da moeda digital, permitiram retirar vários ensinamentos.

A pandemia covid-19 criou uma procura urgente pela digitalização, transversal ao quotidiano das pessoas e à forma como as empresas gerem os seus negócios e os Estados governam os países. Esta procura pode contribuir para acelerar a digitalização das práticas e processos económicos via a aplicação de blockchain e a emissão de moeda digital de banco central (CBDC).

O blockchain foi a condição necessária para a existência de criptomoedas. Mas estas também o serviram, dando-o a conhecer ao mundo. Em 2015, o World Economic Forum colocava o blockchain entre as seis principais tendências que iriam marcar o futuro próximo, já que as potencialidades do blockchain ultrapassam em muito a sua utilização na criação e gestão de criptomoedas. A tecnologia pode ser usada em qualquer situação onde existe a necessidade de um registo partilhado das interações entre múltiplos participantes, onde é relevante conhecer a história transacional dos bens, ou quando o objetivo é manter a escassez e unicidade de uma entidade digital.

São várias as aplicações de blockchain já em funcionamento ou planeadas para se iniciarem brevemente. Entre estas aplicações destaca-se a sua utilização na gestão das cadeias de distribuição com ganhos em termos de logística, anti-contrafação, transparência e segurança; na prevenção da fraude fiscal e falsificação de documentos; em mecanismos mais eficientes de identificação digital, registos públicos e notariado, ou ainda nas áreas da banca, finanças, seguros, comércio eletrónico e cuidados de saúde. Alguns especialistas apontam inclusive a possibilidade de o blockchain providenciar um “salto tecnológico” nos países subdesenvolvidos.

Provavelmente, a aplicação menos atrativa do blockchain é servir de plataforma digital de suporte às criptomoedas, tal como elas existem atualmente. Por exemplo, a bitcoin tem sido pouco utilizada legalmente como meio de pagamento, pois não serve como unidade de conta e meio de reserva de valor, devido à sua extrema volatilidade e existência de bolhas especulativas. Também não deve ser encarada como um ativo de refúgio, pois em situação de crash financeiro, provavelmente também seguirá essa tendência. Foi precisamente isso que aconteceu recentemente com o impacto da covid-19.

Por outro lado, a bitcoin tem sido sobretudo usada no financiamento de atividades ilícitas, e o seu mercado é objeto de constante desinformação e manipulação, além de que produz outras externalidades negativas nomeadamente resultantes do consumo intensivo de energia elétrica. Mas, afinal, o que trouxe de bom para a economia a existência de criptomoedas? Ao servirem como prova-de-conceito, à escala mundial, do blockchain e da moeda digital, permitiram retirar vários ensinamentos.

Primeiro, as criptomoedas, dada a sua imaterialidade e descentralização, reforçaram a necessidade de regulamentação, concertada a nível internacional, dos mercados digitais. Neste âmbito, incentivaram também a investigação sobre mecanismos efetivos de cibersegurança, prevenção da cibercriminalidade, evasão fiscal e branqueamento de capitais.

Segundo, as criptomoedas permitiram mostrar aquilo que os economistas já sabiam há muito. Sem mecanismos de estabilização, a moeda fica sujeita às forças de mercado e logo é suscetível a elevadas volatilidades. Provavelmente, num futuro próximo iremos assistir à emissão de criptomoedas de segunda geração, as stablecoins, cujo valor se mantém acoplado a outros ativos, nomeadamente moedas fiduciárias, via a garantia da sua convertibilidade. O projeto Libra do Facebook visava a criação de uma stablecoin. O projeto não prevaleceu devido às fortes pressões dos reguladores, dado os vários riscos que criaria, que tendo em conta o número de utilizadores do Facebook (cerca de 2600 milhões, 80% mais do que a população chinesa) teriam um cariz sistémico à escala mundial.

Terceiro, apesar de algum vazio regulamentar e descoordenação internacional, os governos, as agências internacionais e os bancos centrais estiveram atentos às criptomoedas. O conhecimento entretanto adquirido enformou a base para tornar as CBDCs uma realidade. No final de 2018, 63 bancos, representando cerca de 80% da população e 90% do produto mundial, estavam a analisar conjuntamente as implicações da emissão de CBDCs, metade já estava a realizar experiências nesse sentido e um quarto já tinha ou estava previsto ter em breve autorização para a sua emissão [1].

A covid-19 irá acelerar o processo de criação de CBDCs. Até porque, segundo parece, a moeda física pode ser um meio de transmissão do vírus SARS-CoV-2. Noutro relatório recente do BIS [2], argumenta-se que como a transmissão do vírus através de notas é menos provável do que através de outros objetos de uso corrente com superfícies menos porosas, tais como cartões plastificados ou teclados de PIN, então a pandemia pode retrair a emissão de CBCDs. Todavia, esta forma de moeda pode ser utilizada através de uma aplicação de telemóvel ou via o computador pessoal. Os relatórios sobre o e-krona do Banco Central Sueco demonstram que são estes que devem ser os canais prioritários.

Perante a crise económica atual, se for introduzida uma CBCD de curso legal, sem um limite demasiado restritivo ao montante por transação, cuja utilização seja efetuada remotamente através de dispositivos eletrónicos pessoais, então estarão reunidas as condições para o seu sucesso. Este sucesso será alimentado e alimentará as recentes tendências em termos de hábitos de pagamento, baseadas em novos serviços de pagamento eletrónico, mais rápidos e baratos, padrões de consumo e canais de e-commerce à escala mundial. Mas o incentivo para a emissão de CBDCs não é apenas o de criar um meio de pagamento livre de SARS-CoV-2. Existe um outro mais fundamental. Se a CBDC pagar juros, esses juros podem ser negativos, o que criará um estímulo à procura interna, sendo por essa via uma ferramenta adicional de política monetária para fazer face à recessão económica.

A emissão de CBDCs pode generalizar-se em breve. A grande coincidência é que já é uma realidade no país onde inicialmente se registaram os primeiros casos de covid-19. No final de 2018 começaram a surgir na internet inúmeros rumores de que o Banco Popular da China estava a preparar o lançamento de um renminbi digital (e-RMB). Apesar do processo estar envolto em algum secretismo, em fevereiro deste ano tornou-se conhecimento público que o Banco Popular da China tinha registado mais de 80 patentes relacionadas com o e-RMB, e cerca de um mês depois era mencionado que a plataforma digital já estava concluída e estava em fase de redação o documento legal para a circulação do e-RMB. Assim, não foi com grande surpresa que, em final de abril deste ano, o mundo recebeu a notícia de que a China iria introduzir o e-RMB nos sistemas de pagamentos de quatro cidades, entre as quais Xiong’na, estabelecida em 2017 sob o controlo direto do Comité Central do Partido Comunista Chinês com o intuito de servir de centro económico-administrativo do país. Neste mês, os funcionários públicos destas cidades já estão a receber os seus salários em e-RMB.

O e-RMB não é apenas uma forma de evitar a propagação do vírus SARS-CoV-2 ou de estimular a procura interna. A sua utilização na iniciativa One Belt One Road permitirá à China controlar algumas das economias emergentes onde o crescimento económico será dos mais elevados nas próximas décadas, dando-lhe novas armas para combater a guerra comercial iniciada pela atual Administração norte-americana.

[1] Barontini, C., & Holden, H. (2019). Proceeding with caution – a survey on central bank digital currency, BIS Paper, No. 101, January
[2] Auer, R. Cornelli, G., & Frost, J. (2020). Covid-19, cash, and the future of payments, BIS Bulletin, No. 3, 3 de abril

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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