Nas alfurjas do Chega

Haja quem os combata desmitificando e esclarecendo as virtudes da vida democrática e das suas instituições, mesmo quando defeituosas. Que ninguém subestime a bestialidade.

Quem ousaria imaginar que o capitão Bolsonaro, vinte anos deputado, encostado à dolce vita parlamentar brasileira, sem qualquer relevo a não ser pelo recalcitrante apoio à ditadura militar, pudesse vir a ser Presidente de um dos maiores países do mundo, o país do Chico Buarque, Oscar Niemeyer, Maria Bethânia, Carlos Drummond de Andrade, Manuel da Fonseca, Vinicius, João Gilberto, Jorge Amado, Tom Jobim e tantos mais?

O seu currículo resumia-se a defender os piores crimes da ditadura de modo grosseiro e banal, um cavernícola que via perigosos comunistas em cima dos fantásticos jacarandás do Rio de Janeiro, nunca levado a sério no que toca a ser eleito Presidente. Não passava de um capitãozeco extravagante de segunda ou terceira ordem.

Mais ao Norte, naquele mesmo continente, quem ousaria imaginar os EUA serem dirigidos por um magnata da construção civil que trazia consigo um lastro de corrupção, negocismo, de fuga aos impostos, supremacismo branco, homofobia, racismo e a mais completa incompetência para o cargo? Quem imaginaria esta personagem dos reality show Presidente do país de Lincoln? Quem ousaria imaginar esta personagem a receitar cloroquina para atacar o coronavírus, depois de aconselhar lixívia? Sim, é verdade, não é realismo fantástico, a cruel realidade vinda dos EUA…

A História a todos surpreende pelo seu elevado grau de imprevisibilidade. Vale a pena fazer esta pergunta: Houve ou não um olhar benevolente para estes dois homens, sempre encarados como outsiders? Foi feito o que devia ser feito para o impedir?

Até certa altura o seu extremismo era tão evidente que por esse facto pensava-se que seriam barrados pelo apego democrático às instituições das populações de ambos os países.

Pois é, mas não foi. Quando se ouvem vozes de democratas a defenderem que se não dê combate a André Ventura porque daí resulta a sua valorização e importância, vale a pena refletir com base na experiência de outras situações similares.

Em todos os povos há classes parasitárias e largas camadas sociais de todas as classes que se deixam atrair pelo oportunismo imediatista, pela promessa de autoridade que resolva problemas graves, pelo nacionalismo cego, pela violência contra as minorias, por homens assumidos como providenciais que dizem o que se diz no café, e o rol é vasto. Sabemos que Salazar e Caetano se aguentaram 48 anos… é caso para pensar. A autoridade ditatorial a impor-se a um povo conformado, salvo honrosas e extraordinárias exceções.

Quando Ventura propõe a deportação de Joacine, o confinamento dos ciganos, o regresso à cadeia de todos os presos libertados, a castração dos pedófilos, o aumento das penas de prisão, e quando propala mentiras evidentes, quando destila ódio contra o 25 de Abril e incensa a religiosidade, poderá haver dúvidas que os antifascistas devem combater com serenidade, lucidez e inteligência este político arrivista que se tornou graças ao futebol e à CMTV/Correio da Manhã conhecido e seguido por importantes franjas da sociedade portuguesa?

Poderá haver qualquer dúvida sobre o extraordinário trabalho do jornalista Miguel Carvalho acerca dos meandros do Chega e do mundo que o sustenta e que trouxe à luz do dia as alfurjas tenebrosas do Chega?

Caminhamos para dias muito difíceis com desemprego a níveis assustadores, com miséria e fome e uma UE nas encolhas e com um governo a esquecer-se dos que vivem muito mal, arrombando a Segurança Social para que as grandes empresas beneficiem dos descontos de quem trabalhou e descontou.

Neste terreno medram os profetas evangélicos e outros, os adoradores do autoritarismo, os seguidores do mais boçal primarismo, os vendedores do divisionismo, os que se agacham na democracia para a morderem. Haja quem os combata desmitificando e esclarecendo as virtudes da vida democrática e das suas instituições, mesmo quando defeituosas. Que ninguém subestime a bestialidade. Que ninguém se esqueça das lições da História.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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