A (des)proteção das crianças em Portugal

Expor uma criança a um progenitor condenado por violência doméstica, num regime de residência alternada, é muito mais grave, porque quanto maior o tempo em conjunto maior o risco de agressão e de escalada do tipo da violência. E sim, o caso da Valentina é um exemplo disto.

Os inúmeros casos noticiados nos últimos tempos deviam-nos fazer questionar a proteção das crianças em Portugal. Como elementos de uma sociedade que se quer justa todos temos a responsabilidade e o dever de atuar, denunciando e exigindo ação das autoridades. Quem tem uma voz pública em meios de comunicação social, tem ainda uma responsabilidade acrescida. Esperaria que dessas vozes ecoasse a preocupação com as crianças e a exigência de medidas efetivas que defendam quem não se consegue defender.

Relativamente ao caso do homicídio de mais uma criança em casa, o local onde deveria estar protegida, sendo o autor suspeito do crime o seu progenitor, qual não é o espanto de ver o tema mudar de foco para se discutir comentários de uma juíza numa publicação online. De forma surreal, a SIC dedica, num jornal da noite em prime time, tanto tempo a noticiar o caso gravíssimo da morte de uma criança, que chocou todo o país, como uns comentários numa rede social! Esta criança tinha sido sinalizada e tinha sido aberto um processo junto da CPCJ, posteriormente fechado no espaço de um mês. Acreditamos mesmo que existem os recursos em Portugal para que num mês se consiga tomar todas as medidas essenciais para se determinar a existência de perigo para uma criança?

Segundo o Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ de 2018, entre 2014 e 2018, verificaram-se um total de 26.434 situações de cessação da intervenção e/ou arquivamento do processo. Destas, 12.762 ocorreram na fase de avaliação diagnóstica. Só em 2018, foram arquivados liminarmente 8441 comunicações, o que representa 21,6 % do total das mesmas.

Quantos destes casos voltam a ser referenciados mais tarde e com uma escalada de violência que poderia ter sido evitada?

Sabemos agora que este processo vai ser investigado, mas não porque houve uma clara manifestação destas vozes nos meios de comunicação social. Houve inclusive o caso do comentador Daniel Oliveira que se focou em manifestar na TV, radio e jornais a sua indignação pelos comentários da juíza Clara Sottomayor. Não se estranha, sendo que este não é o primeiro artigo do mesmo comentador a referir a mesma juíza. Sim, uma juíza pode ser humana, sem pôr em causa o seu profissionalismo ou código deontológico. Aliás o mesmo Daniel Oliveira, que tanto se preocupa com o dever de reserva da juíza Clara Sottomayor, não se inibe de dar a voz a outros juízes, que falam sobre os seus casos específicos e referem inclusive a utilização de terapias sem qualquer reconhecimento científico e já alvo de parecer da Ordem dos Psicólogos. Citando: “As ‘Constelações familiares’ não apresentam enquadramento científico, teórico ou académico, nem socioprofissional. Não havendo referencia a formação idónea na área, nem qualquer tipo de regulamentação profissional...as ciências psicológicas não reconhecem, utilizam ou recorrem às ‘Constelações familiares’.

Parece que o problema não é os juízes falarem, mas sim não concordarem com ele.

Ainda nas reações públicas à morte de uma criança deparo-me com um novo artigo sobre a relação entre a morte de uma criança e a residência alternada da Dra. Rute Agulhas.

E qual o choque seguinte? Ver que se tem como primeira prioridade assegurar que este caso não tenha qualquer impacto negativo nos projetos de lei em discussão na Assembleia da República relativos à implementação da residência alternada como regime regra.

Começo por clarificar que não tenho qualquer oposição à existência de residência alternada, regime que já é inclusivamente largamente aplicado em Portugal, mas sim à existência de um regime regra. As instituições de apoio a vítimas sabem que há crianças, mesmo algumas que se encontram a residir em casas abrigo, a serem forçadas a visitar progenitores já condenados por violência doméstica. Existem também crianças forçadas a residências alternadas mesmo com um progenitor já condenado por violência doméstica. É na proteção das crianças que devemos estar primeiramente focados. Assegurar que temos a legislação necessária e que a justiça avalia o risco e toma as medidas de proteção de forma adequada e com celeridade. O discurso que ouvimos de diversas entidades com responsabilidade nesta área é que o problema começa logo nas visitas que não deviam existir e que o regime regra de residência alternada não vai alterar este cenário. Não, efetivamente as visitas não deviam existir, mas existem e um regime regra de residência alternada vai piorar e muito a atual situação.

Ser pai ou mãe não é um certificado de ausência de risco para os seus filhos e filhas e, em demasiados casos, as pessoas mais perigosas para as crianças são precisamente os seus próprios progenitores. Expor uma criança a um progenitor condenado por violência doméstica, durante o regime de visitas, é desprotegê-la. Expor uma criança a um progenitor condenado por violência doméstica, num regime de residência alternada, é muito mais grave, porque quanto maior o tempo em conjunto maior o risco de agressão e de escalada do tipo da violência. E sim, o caso da Valentina é um exemplo disto, mesmo que neste caso o tempo de convivência acrescido não tenha sido determinado por um tribunal.

Não podemos continuar a desproteger as crianças em Portugal!

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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