Dia 53: Quando a nossa roupa tem histórias para contar

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Ana,

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Estive a trocar a roupa de Inverno pela de Verão e vi-me obrigada a fazer um intervalo para te vir escrever uma carta, tal a urgência do que tinha para te dizer: preciso que venhas cá passar uns dias para usares a minha roupa!

Há “peças” que não sou capaz de dar, mesmo quando já não me cabem ou não estão na moda. É impressionante a nitidez com que me lembro do momento em que as comprei, em que situações as usei, as histórias que lhes estão associadas. Estas memórias de pano estendem-se a coisas que eram tuas ou da tua irmã, que inclusivamente vocês iam oferecer, mas que resgatei a tempo e agora ano após ano revejo, hesito se devo ou não guardar, e guardo sempre, convencendo-me de que em breve as gémeas as usarão.

O mais extraordinário é que, à medida que volto a pendurar a minha roupa no armário, sei à partida exactamente quais destas “peças” é que vou vestir, e quais é que vão ali ficar imóveis, provocando-me um misto de alegria e desgosto de cada vez que as preterir, e uma sensação de traição quando — tão certo como o sol se levantar amanhã — comprar roupa nova. Vou consolá-las dizendo-lhes que são as minhas favoritas e que só não as uso porque a tirania da moda para este Verão não o consente, alimentando-lhes a ilusão de que na Primavera/Verão 2021 talvez seja diferente. O que é uma possibilidade.

Será que há alguma linha da psicanálise que analise o significado das memórias têxteis? Vou tentar descobrir. Enquanto isso, aceita o meu convite, e traz contigo as tuas filhas. Venham brincar com o meu guarda-roupa, dispostas a ouvir as histórias associadas, evidentemente.


Querida Mãe,

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Que engraçado falar nisso, porque ainda hoje estava a olhar para a minha roupa e a pensar nas memórias que me trazem. Quando olho para fotografias antigas das primeiras coisas que digo é “Oh, adorava esta T-shirt”, ou qualquer coisa do género. O mais cómico disto é que, como a mãe bem sabe, detesto comprar roupa nova, e a roupa não me suscita grande paixão. Excepto quando já a usei para alguma coisa! A partir daí sim, torna-se importante.

Quando era mais nova, resolvia isto de uma forma bastante inteligente: em vez de comprar roupa ficava com as usadas e indesejadas da mana, porque: 1) já tinham sido filtradas, por isso sabia que as podia usar em segurança — nunca confiei no meu próprio sentido de moda; 2) já eram mais confortáveis porque já tinham sido usadas; e 3) traziam consigo memórias.

Mas, mesmo assim, sofri sempre muito com a ideia de que precisava de encontrar uma roupa que espelhasse a minha identidade, e como duvidava um bocadinho de que identidade podia ser essa, ficava sempre bastante insegura. Quando decidi tornar-me cantora “a sério”, agitava-me com a questão de que roupa escolher para os concertos, mas, por milagre, consegui literalmente a melhor pareceria do mundo para mim, com a Vintage Bazaar, não só porque têm roupa giríssima, mas porque acima de tudo me ajudaram a perceber do que é que eu gostava e não gostava, e como combinar roupa! Agora, adoro olhar para o meu armário, não para decidir o que vou vestir, que isso ainda me enerva, mas para percorrer o “vestido que usei no concerto do CCB”, o que usei no videoclip do primeiro single Dibba Dee Doo e por aí adiante.

Por isso não sei se existe a tal psicoterapia têxtil, mas sei que para mim a Vintage Bazaar — Obrigada, Rita e Patrícia! — foi mesmo terapêutica na minha fobia.

Ana

P.S.: Sabe que não tenho muita paciência para vestir e despir coisas, por isso proponho que as gémeas vistam a sua roupa e eu fique sentada a ouvir as histórias!


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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