Duas boas razões para felicitar a Comissão Europeia

Adotando uma atitude inspiradora em favor da mudança, a Comissão Europeia assumiu lucidamente a narrativa da emergência ecológica.

A Comissão Europeia adotou recentemente duas estratégias importantes e complementares: uma sobre os objetivos para a biodiversidade (Estratégia de Biodiversidade) e outra sobre a necessária transformação da agricultura europeia (Estratégia do Prado ao Prato –​ Farm to Fork). Esses dois textos justificam uma leitura atenta, destacando-se pela clareza e força das propostas, e pela ambição dos objetivos anunciados para a década. Se é legítima a dúvida sobre a sua implementação e eficácia, entendo que a mudança e o arrojo que revelam são boas razões para felicitar a Comissão Europeia.

Com o anúncio das estratégias, o executivo europeu reconhece, implicitamente, o fracasso das políticas ambientais das últimas décadas, tanto a nível comunitário como por parte dos Estados-membros. Trinta anos de diretrizes para a conservação da natureza não mudaram nada: a perdulária destruição dos espaços naturais prossegue a ritmo acelerado, a diversidade das espécies mais comuns entra em colapso, os solos estão cada vez mais pobres, e os recursos pesqueiros tornam-se uma preocupante miragem na aproximação ao velho continente.

Adotando uma atitude inspiradora em favor da mudança, a Comissão Europeia assumiu lucidamente a narrativa da emergência ecológica. Habituámo-nos a que esta preocupação fosse sobretudo veiculada por ambientalistas, cientistas e pela comunicação social, mas neste caso são os responsáveis políticos que reconhecem a urgência, ao mesmo tempo que confirmam o fracasso de uma intervenção de décadas. São estes decisores que reconhecem ainda a perda de biodiversidade e o colapso dos ecossistemas como uma das ameaças mais graves que a humanidade enfrenta nesta década, afetando os alicerces da própria economia. Em suma, a Europa assume que o custo da inação é imenso e que o cenário que nos espera é um dos maiores desafios deste século, exigindo conhecimento e uma atuação política convergente em favor de uma gestão inteligente dos recursos naturais.

A ambição das estratégias apresentadas é grande. A Comissão Europeia pretende metas vinculativas para o restauro de ecossistemas naturais, propondo, entre outras, medidas concretas para colocar a biodiversidade da Europa em rota de recuperação até 2030, incluindo transformar pelo menos 30% das terras e dos mares da Europa em zonas protegidas e geridas de forma eficaz, reverter o declínio dos polinizadores e reduzir o uso de pesticidas em 50%, expandir a agricultura biológica a 25% das áreas agrícolas, plantar três mil milhões de árvores, reduzir o uso de fertilizantes em pelo menos 20%, restabelecer o curso natural de pelo menos 25.000 km de rios, aumentar a área dos espaços verdes urbanos, e levar a internet de banda larga rápida a todas as zonas rurais até 2025.

Sabemos que a probabilidade de incumprimento destes objetivos é grande. A Comissão terá ainda que convencer os países mais relutantes e afrontar os grupos que têm tudo a perder com a preservação do ambiente. A cultura institucional que prevalece em Bruxelas ainda é a da construção de normas com as partes interessadas e estas são tipicamente as grandes cooperativas agrícolas, os gigantes das obras públicas, as grandes empresas de transporte, e as indústrias agroquímica e agroalimentar.  É com estes interlocutores que se desenharão os detalhes técnicos das medidas a ser aplicadas, as regras de aplicação e os indicadores de monitorização para avaliar a sua eficácia, o que pode significar compromissos e perda. Para que as soluções sejam mais favoráveis ao interesse coletivo, será determinante uma maior consciência cívica e responsabilidade do cidadão na participação e na exigência. 

Em Portugal, como vamos conseguir conciliar a bondade das estratégias e das políticas ecológicas agora anunciadas, com a construção de infraestruturas como o novo aeroporto do Montijo ou com iniciativas como a construção da “cidade lacustre” de Vilamoura – aberrações que persistem na opção pela destruição do património natural? Como vamos harmonizar esta nova narrativa europeia que coloca – e bem – a natureza no centro da recuperação económica, com a expansão da produção agrícola superintensiva, consumidora de solos e de água, agressivas para a ecologia dos territórios e tantas vezes associadas às piores condições de desenvolvimento social e humano? Dúvidas que teimam em mitigar o entusiasmo da expetativa na transição que a nova Comissão Europeia parece querer liderar.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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