A covid-19 reavivou o contrato social. E se isso curar o populismo também?

Numa inesperada reviravolta da trama, a Suécia é, aos olhos do mundo, o aluno exemplar que se espalhou ao comprido no exame nacional, enquanto Portugal recebe aplausos globais pela sua estratégia para travar a pandemia.

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Num parque de Estocolmo, na Suécia, as pessoas aproveitam o tempo quente a 22 de Maio. Reuters/TT NEWS AGENCY

Numa inesperada reviravolta da trama, a Suécia é, aos olhos do mundo, o aluno exemplar que se espalhou ao comprido no exame nacional, enquanto Portugal recebe aplausos globais pela sua estratégia para travar a pandemia. Os portugueses parecem ter reatado com o Estado ao responderem ao desafio com sacrifícios pessoais para o bem comum. É possível (re)construir uma noção de Estado conjugada no plural e onde o populismo não entra?

Falava há dias com a minha amiga Joana, que conhece bem a minha segunda pátria e país de residência, a Suécia. Temos tido interessantes conversas sobre o elevado grau de confiança dos suecos nas suas instituições. Reagia com espanto à maneira como António Costa explicara que, mesmo com multas previstas na lei, o Governo não contava castigar quem não usasse máscara nos transportes públicos. “Não estamos habituados a que nos apelem ao nosso bom senso, como se fôssemos nórdicos!”, dizia ela a rir.

À luz — à sombra, na verdade — da covid-19, Portugal faz boa figura graças a uma bem-sucedida terapia de casal entre o Estado e os cidadãos portugueses. De uma relação erodida para o que os psicólogos chamam breakthrough na terapia. O El País reciclou as palavras de 2017 de Marcelo Rebelo de Sousa e diz que Portugal se tornou “na Suécia do Sul”. Pode agora a Suécia almejar a ser “o Portugal da Escandinávia”?

Nada habituado a conversas confrontativas, este país nórdico é agora palco de debates nas redes sociais, onde até há teorias da conspiração e ataques pessoais. De um lado, os que têm uma fé inexcedível nas autoridades e, do outro, os que acusam a agência para a saúde pública e o governo de negligência e segundas intenções.

Para dar aos seus governos margem de manobra para lidar com a pandemia, as oposições de ambos os países pausaram as hostilidades do debate político. Em Estocolmo, o partido de extrema-direita, os Democratas Suecos, interromperam o seu crescimento sucessivo e, em tempos de coronavírus, perdem cerca de 2% nas últimas sondagens. Temos aqui prova empírica de que o populismo recua quando a população e as instituições se mobilizam contra um inimigo comum que é real, o vírus.

Depois do “L’état, c’est moi” de Luís XIV, Jean Jacques-Rousseau fala-nos do “contrato social”, uma noção de filosofia política em que os cidadãos seguem as leis e o Estado retribui com justiça, liberdade e previsibilidade. Com a construção do Estado-providência na Europa a partir da Segunda Guerra Mundial, este contrato materializa-se em transacções concretas: descontos para um sistema de aposentadoria, cuidados de saúde e educação financiados por contribuições fiscais de cada um. Neste departamento, a Suécia – que estava, há cem anos, exaurida pela pobreza e tinha perdido cerca de 10% da sua população para a emigração — joga na liga dos campeões. Hoje, ano sim, ano sim, dizem as pesquisas que os suecos vêm o fisco como uma das marcas em que mais confiam. A carga fiscal é alta, algo que horroriza os comentadores da Fox News. Mas, lá vão lembrando os meus amigos e família em Portugal, “Recebes muito em troca, Sérgio”. Têm razão.

Em Portugal, há paz em tempos de pandemia. Mas o tal breakthrough na terapia de casal cria, sobretudo, uma oportunidade de usar harmonia entre os portugueses e o Estado para construir uma relação mais recíproca, em que ambos cumprem os seus deveres e exigem contrapartidas certas e de qualidade. Para que o contrato social tenha uma longa vida, não há espaço para quem não vai às urnas para ir à praia, para quem se gaba à mesa do jantar de como arranjou maneira de declarar menos do que deve, para o negócio que não registou todas as suas transacções na caixa. Em troca, os portugueses aumentam a autoridade moral com que exigem uma Segurança Social com processos transparentes ou um Centro de Emprego onde as pessoas são atendidas com o respeito que merecem quando a vida lhes mói a auto-estima. Não se trata apenas do casal se zangar menos. Esta aliança enfraquece o populismo e alimenta a participação democrática e a consciência cívica. Ninguém contra ninguém porque o Estado somos nós.

É que esta proeza do coronavírus dá brilho — e bem! — ao orgulho nacional, mas, se ninguém a usar como um trampolim para uma nova atitude por ambas as partes, o ano de 2020 será apenas uma história que começa assim: “Lembram-se daquela vez em que nós e o Estado estávamos do mesmo lado?”

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