A carga horária

Qualquer reforma deve compreender os limites da coerção e a capacidade de persuasão. Sem mudar os regulamentos e a sua lógica, nada se conseguirá para o ensino superior.

Há razões de fundo para as cargas letivas no Superior (sendo que o termo “carga” não é acaso). Há alguma ligação com uma cultura de “sobretrabalho”, que ainda predomina no nosso país. Mas convém não esquecer que os cursos pós-Bolonha encolheram nos anos letivos, sendo que tivemos o cuidado de não reduzir o nível de conhecimentos – a Lei de Graus e Diplomas procurou preservar a qualidade.

Importa também não esquecer o efeito de uma série de regulamentos, nomeadamente os de avaliação de desempenho e de prestação de serviço, que desconsideraram a componente pedagógica, criando uma corrida pelas horas.

Em matérias de organização e governação devemos ter em atenção o que se institui como prémio. Se as pessoas são colocadas numa corrida às horas, devido à conjugação dos critérios de contratação, de avaliação e até de prestação de serviço, então não nos podemos admirar com as elevadas cargas horárias de docentes e alunos.

Sem alterar este sistema de incentivos, estaremos a fazer a reforma do nada.

Curiosamente, nestes dias de confinamento, têm surgido notícias das universidades dos EUA com queixas sobre o modelo 4:4. Os relatos são de desespero, incapacidade de manter a produção científica, exaustão e esgotamento. Ora, o que é o sistema 4:4? É lecionar quatro unidades curriculares de três horas semanais em cada semestre. Ou seja, uma carga letiva de 12 horas semanais leva ao desespero e angústia no outro lado do Atlântico.

Por cá, a Universidade de Coimbra estabeleceu que dez horas letivas semanais correspondem a um contrato a 50%. O que desespera os americanos é metade da carga letiva para um convidado, que continuará a ter de procurar fazer investigação se quer mesmo aspirar à “tenure track”.

Alguns politécnicos procuraram um truque de aumentar o número de semanas letivas, para desvirtuar a média (que no horário semanal continuava de facto acima do limite legal).

Este fenómeno de desvalorização assolou a generalidade das instituições, com um crescimento exponencial do número de docentes convidados, com cargas horárias cada vez maiores.

Entre o subfinanciamento e a autocracia, as consequências estão à vista de todos.

Mexer na Lei de Graus e Diplomas, sem alterar estas questões, significa um problema. Não nos podemos arriscar a mais uma desvalorização da qualificação avançada e ao aumento do desemprego, mais ainda numa altura como esta.

É certo que nem o SNESup, nem o ministro Manuel Heitor, têm feito particular questão de assinalar os pontos em que concordam. A contemporaneidade dos nossos mandatos faz-se de medidas que ele anuncia e que nós procuramos corrigir. Porque conhecer o sistema é ter atenção aos detalhes e não se coaduna com meras intenções e anúncios.

Lembram-se do anúncio dos doutoramentos dos politécnicos que esbarrou na Lei de Bases do Sistema? Regressamos ao “quem avisa, amigo é”.

Há ainda questões pedagógicas que têm de ser abordadas. A lógica do aprendizado versus a lógica do ensino, que aparece como leitmotiv na proposta do ministro Manuel Heitor, merece debate. Mais: esta viragem do ensino obriga a maior autonomia e esforço da parte dos alunos, que sem apoio acentuará ainda mais as desigualdades.

Qualquer reforma deve compreender os limites da coerção e a capacidade de persuasão. Sem mudar os regulamentos e a sua lógica, nada se conseguirá.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção