Quem são afinal os abutres?

Como bem sabe quem lê Clara Sottomayor, quem a ouve nas aulas e nas conferências ou quem priva com ela: o seu lema é sempre, e acima de tudo, o da empatia com o sofrimento das crianças.

Dirijo estas palavras a todos os cidadãos e cidadãs, a propósito de comentários feitos pela Doutora Maria Clara Sottomayor na rede social Facebook, publicados pela SIC Notícias na reportagem “Juíza comenta caso da morte de Valentina no Facebook”. Esta reportagem foi transmitida no dia 11 de maio no telejornal das 13h00 e depois repetida durante a tarde e no jornal da noite, com alterações.

Faço-o por uma questão de justiça social e porque nos últimos dias muito se tem falado na reserva a que os juízes e juízas estão obrigados/as.

Importa previamente esclarecer que não é verdade o que afirmou a SIC na reportagem divulgada cerca das 13h09m do dia 11 de maio. Diferentemente do que foi aí veiculado, e conforme Clara Sottomayor esclareceu no seu direito de resposta, os comentários não estavam na sua página de Facebook e nunca dela foram apagados. Pelo contrário, continuam disponíveis – como sempre estiveram – na página da Dra. Dulce Rocha, presidente do IAC.

As redes sociais são um espaço de comunicação interpessoal e um juiz ou uma juíza tem direito à vida social, a dialogar com os outros sobre as suas preocupações, despojado/a das suas vestes de juiz/a. A vida seria insuportável para quem, tendo esta profissão, tivesse que falar com os outros ou analisar todas as situações da vida, sempre nestas vestes.

O dever de reserva deve ser avaliado de acordo com a situação em concreto e a importância social do assunto – neste caso a morte de uma criança – e tendo em conta a perturbação que o mesmo provoca nas pessoas. E, obviamente, sem nunca esquecer o contexto cultural atual de pandemia associado à multiplicidade de meios tecnológicos e diversidade de plataformas digitais onde todas as pessoas passaram a estar conectadas entre si, de forma “despida”.

Neste quadro, não é legítimo nem tem qualquer fundamento a utilização descontextualizada dos comentários de Clara Sottomayor – escritos no âmbito de uma conversa à qual não se pretendia dar caracter público – em resposta a uma pergunta: “Dulce, acabei de saber… Quem matou a menina? Como é possível? O que aconteceu?”, para lhe tentarem imputar a violação de deveres funcionais ou a instrumentalização do caso para se insurgir contra um projeto lei em discussão que visa introduzir a residência alternada de crianças filhas de pais separados como presunção ou regra no Código Civil.

Ora, na verdade, a Doutora Clara Sottomayor não opinou sobre esse processo legislativo, nem instrumentalizou o caso para fundamentar uma opinião contrária à guarda partilhada. Das palavras usadas e do contexto em que foram escritas resulta apenas o questionar, em geral, o respeito pelos direitos das crianças nos processos de proteção e tutelares cíveis que lhes dizem respeito. Tratou-se de uma perplexidade, que é humana, e de um conjunto de interrogações, perante a notícia que estava a ser divulgada naquele momento pela SIC de que o modelo aplicado ao caso era a guarda partilhada (telejornal da tarde, domingo, 10 de maio): na verdade, neste pressuposto, seria pertinente questionar que avaliação tinha sido feita para aplicar o modelo àquela família! O único apelo que fez nesses comentários foi “que tudo fosse investigado até ao fim”.

Mais grave ainda, por leviana e injusta, é a comparação que Daniel de Oliveira fez da sua pessoa como juíza – porque foi assim que a citou, designando-a por “Juíza Clara Sottomayor” – a um “abutre” (jornal Expresso, 13 de maio), que não sofre com a morte da criança, mas apenas se aproveita do cadáver para prosseguir uma agenda legislativa contra a guarda partilhada, equiparando-a a André Ventura, político que apelou à introdução da prisão perpétua em Portugal a propósito do caso Valentina e que é conotado com ideologias xenófobas e racistas.

A meu ver, foi sim Daniel Oliveira que, ao fazer esta absurda comparação, instrumentalizou o caso da menina de Peniche para denegrir uma juíza, só porque Clara Sottomayor, no seu livro Regulação do exercício das responsabilidades parentais, escrito ao abrigo da liberdade científica que vigora na academia, não pensa como ele em relação à guarda partilhada! Em vez de usar o seu tempo na comunicação social (jornal Expresso, rádio e televisão) para sensibilizar a população para os direitos humanos das crianças, dever que lhe compete como cidadão e comentador, e denunciar as estruturas sociais que permitem a perpetuação dos maus tratos contra crianças e a tolerância da sociedade e do Estado para com eles, escolheu promover o processo legislativo de residência alternada, atacando quem não pensa como ele. É caso para perguntar: quem foi, afinal, “abutre”?

Como bem sabe quem lê Clara Sottomayor, quem a ouve nas aulas e nas conferências ou quem priva com ela: o seu lema é sempre, e acima de tudo, o da empatia com o sofrimento das crianças.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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