O novo normal

Que lições retirámos destes dois meses de paragem? Parámos mesmo? Refletimos? Mudámos alguma coisa ou vamos voltar às nossas vidas, tantas vezes sem rumo nem sentido?

Estamos a chegar ao fim de um ciclo, um ciclo que nunca nos havia passado pela cabeça poder ser possível. Todos nós pensámos um dia como seria o “fim do mundo”, não propriamente a extinção, mas a grande crise que nos obrigaria a mudar de vida. E estou em crer que esse momento chegou, não por um qualquer karma divino, não por uma determinação bíblica, mas porque a Humanidade atingiu um ponto de saturação que não poderia continuar sem nos levar à degenerescência.

E, de repente, sem que ninguém esperasse ou previsse, o mundo parou, literalmente. Estivemos confinados a nossas casas, mudámos hábitos e rotinas, racionámos de forma voluntária, tivemos medo, deixámos de nos tocar, de nos abraçar e até de nos aproximar.

Como disse um dia Fernando Pessoa, “primeiro estranha-se, depois entranha-se”, e muitos de nós habituámo-nos a este estado de emergência.

Uns em lay-off porque a sua atividade económica ficou reduzida a zero, outros em teletrabalho, o bicho papão das relações laborais que, anos e anos a fio, fomos adiando sem justificação razoável que não o facto de sermos animais de hábitos, as aulas passaram a ensino remoto online e as famílias viram-se obrigadas a serem isso mesmo, famílias.

Indignámo-nos porque outros rompiam os seus deveres colocando outros em risco, batemos palmas aos que na primeira linha lutavam contra o nosso inimigo comum, e tantos deles sucumbiram, o humanismo que há muito recalcáramos veio ao de cima no turbilhão das nossas emoções e das nossas reflexões. O tempo que nunca tínhamos para coisa nenhuma tornou-se muito, e passámos a ter tempo para tudo. O medo, a responsabilidade e o dever cívico suplantaram a obrigação do confinamento, de uma forma geral. Mas ao longo deste longo tempo não houve ninguém que não ansiasse voltar à vida normal. E o que será isso de” voltar ao normal”?

Será que voltaremos às rotinas que eram as nossas, de há apenas dois meses atrás? Voltaremos a não ter tempo para nada a não ser vivermos mergulhados em afazeres, em consumo e a viver vidas que não são verdadeiramente nossas? Voltaremos a correr alucinadamente de projeto em projeto, de reunião em reunião, de afazer em afazer, esquecendo aquilo que de facto importa e ampara a nossa existência? Ou conseguiremos criar outras rotinas, em equilíbrio com os nossos projetos de vida e com a dos que nos acompanham nesta jornada? Voltaremos à realidade que conhecíamos ou teremos uma vida diferente? São estas as grandes, e novas dúvidas que nos assolam hoje. Que lições retirámos destes dois meses de paragem? Parámos mesmo? Refletimos? Mudámos alguma coisa ou vamos voltar às nossas vidas, tantas vezes sem rumo nem sentido?

Os resultados, para já, estão à vista. A sociedade habituou-se a um “novo normal”, de tal forma que o desconfinamento que se previa desordenado, pese embora se tenham tomado todas as precauções em múltiplas sessões de esclarecimento e comunicados ao país, está a decorrer lenta e gradualmente. Os portugueses sabem, e sentem, que nada será como dantes.

O desconhecido, o imprevisível, o risco espreita a cada esquina, a cada abraço, a cada aperto de mão, e os nossos hábitos dificilmente voltarão sem a certeza de que o perigo se extinguiu definitivamente. Não deixa de ser curioso este início do desconfinamento, em que muitos ainda vivem os medos de regressar ao trabalho presencial, pelos riscos que isso comporta, mas soltam gritos de liberdade num simples passeio no jardim junto à sua casa, numa viagem curta de carro ou numa passagem pela beira-mar.

Mas o mundo não será como dantes. Enquanto as crianças não regressarem à escola, todas as rotinas familiares se mantêm alteradas. O comércio vai abrindo, os transportes vão voltando a ter as linhas regulares, os hotéis e restaurantes voltam a abrir com a sua capacidade limitada, as empresas vão voltando gradualmente à sua atividade, mas nada será como dantes. Há duas gerações que determinam os nossos hábitos: os nossos pais e os nossos filhos. Se há lição que este vírus nos veio dar, foi a de que devemos o cuidado aos nossos pais e aos nossos filhos, a família foi colocada na sua posição cimeira das nossas prioridades.

E nada será como dantes. Tantas pessoas que sofrem agora com o flagelo do desemprego e da fome – sim, a fome voltou.

Tantas empresas encerraram ou viram a sua viabilidade económica comprometida, setores inteiros adoeceram, como a cultura, o turismo e a restauração. A pandemia igualou todos, sem distinguir classes, credos, raças ou ideologias.

O mundo mudou. E com ele instalou-se o teletrabalho que reduzirá a necessidade de deslocações desnecessárias e consequentemente a redução do consumo de combustíveis fósseis.

Ganha o ambiente, e nós ganhamos tempo. Mas isto terá consequências nas cidades, o número de lugares de escritórios necessários levará a uma nova reconfiguração do imobiliário, será o regresso das famílias às grandes cidades? Haverá crise neste setor ou novas oportunidades? As empresas beneficiarão de redução de despesas fixas, mas há sectores de serviços a empresas que com certeza ressentirão estes impactos. O trabalho remoto aumentará a necessidade de uso da tecnologia, mas também da segurança dos dados e da internet. E no meio desta reorganização forçada, a grande oportunidade é a de todos e cada um de nós. A nossa vida, a nossa família, e nós mesmos.

Não sabemos como vai ser o dia de amanhã, mas espero sinceramente que seja melhor do que o de há dois meses: mais solidário, mais fraterno, mais justo e, verdadeiramente, com mais liberdade para traçarmos o rumo de cada um de nós sem vivermos escravizados pelas coisas que pensávamos que eram tão importantes, mas que o confinamento nos veio mostrar que podemos viver tranquilamente sem elas.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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