Expandir a normalidade

Para muita gente do Alentejo, o isolamento causado pela pandemia de covid-19 foi a continuação de um isolamento de décadas, e pouco mudou durante os dois meses que pararam o resto do mundo.

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Pavel Tavares

Desde Janeiro que vivo no Alentejo. O monte em frente já é Algarve, separado pelo rio que faz a fronteira. Para muita gente aqui, o isolamento causado pela pandemia de covid-19 foi a continuação de um isolamento de décadas, e pouco mudou durante os dois meses que pararam o resto do mundo. O pastor Rui continua a levar as 300 ovelhas para o vale todas as manhãs, deita-se à sombra da oliveira e cumprimenta os carros que passam de hora a hora com um ligeiro aceno do cajado. Adília continua a tratar das 40 galinhas e a oferecer quase todos os ovos. Gracelina não mudou em nada o seu horário: levanta-se às cinco para fazer o pão e vai pendurando as carcaças nos portões. A típica cena dos alentejanos sentados num banco a observar o dia também se mantém, com a diferença de que agora todos usam máscara. A vida continua em relativo equilíbrio.

Entretanto, o mundo vai saindo à rua e as distâncias entre corpos diminuem lentamente. Querendo marcar essa saída, eu e o meu namorado fizemos um farnel para três e almoçámos no vale com o pastor Rui, o seu cão preto de orelhas arrebitadas, Texugo, e as ovelhas que nos olhavam com desconfiança. Rui, perante a companhia inesperada, revelou-se um contador de histórias com amor ao detalhe. Já quase nos 80, com quatro filhos e seis netos, descreveu os anos que passou a combater na Guiné-Bissau, o raspar das balas e dos corpos a cair à sua volta. Isto tudo debaixo da oliveira com o zumbido das moscas alentejanas e a calmaria de quem tem tempo, em plena digestão de linguiça, e a esticar-nos cervejas para o colo. Ao fim de cinco horas despedimo-nos e subimos o monte de volta a casa.

No dia seguinte, recebo uma chamada de Rui: “Tenho de levar as ovelhas para o curral aí em cima, o homem que costuma ajudar não pode vir e fazer isto sozinho é difícil.” Descemos de carro já o sol se punha, parámos no vale, Rui entregou-me o cajado de dois metros, ponta metálica: “Estamos à tua espera lá em cima, só tens de seguir atrás com o Texugo.” Ele entra no carro com o meu namorado e dão a volta até ao topo do monte, esperando o rebanho pela frente. Eu vejo-me com 300 ovelhas e um cão-lobo que segue ao meu lado no fim da procissão. Vou dando toques no dorso das que param para comer e solto pequenos sons motivadores, “eis” e “ais” com toda a confiança de treinadora de bancada. Trezentas ovelhas que se estão a marimbar para distâncias sociais.

Texugo segue a meu lado e sei que, muito mais do que eu, tem controlo sobre tudo isto. Quando olho para ele devolve-me o olhar com a língua pendurada e aquele sorriso de cão, como se perguntasse: “Então que tal? Estás a gostar?”. À minha frente, a cena dá vertigens: uma nuvem de lã que se move pela escarpa, concerto de chocalhos no caminho estreito, ladeado de esteva com flores brancas a brotar. O fim do dia cobre-nos de luz doce e o baque do cajado na terra é o compasso que Rui deve conhecer tão bem. Talvez eu esteja a sair do confinamento pela covid-19 e a entrar numa qualquer cena bíblica, mas a verdade é que este confinamento nos deu vontade de experimentar a normalidade — e ao sair dele somos convidados a penetrar outros quotidianos. Chego ao topo do monte, onde a silhueta do pastor aparece a acenar ao longe e, já sei, a reclamar o cajado. Texugo começa a correr entre o rebanho para o conduzir pela frente e nos momentos de pastora que me restam penso que foi necessária uma pandemia para reparar em Rui e no seu rebanho.

Nos dias seguintes continuámos a ajudá-lo, percorrendo os campos na pick-up vermelha, de pé na caixa aberta com a alegria do vento. Até quando? Imagino o regresso à normalidade como um convite para a expandir, ampliar a vida e provocar o quotidiano, começando pelo monte mesmo ao lado de casa.

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