Não podemos voltar à normalidade porque a normalidade era o problema

Restrições de saúde pública decididas em contextos de pandemia comprometem os direitos e o bem-estar das mulheres no que toca à gravidez, parto e direitos sexuais e reprodutivos: mais de 47 milhões de mulheres podem perder acesso aos meios de contracepção, levando a cerca de 7 milhões de gravidezes indesejadas nos próximos meses.

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Medusa, a górgona, criatura mítica e mortal, com serpentes no lugar de cabelo e olhar petrificante, foi decapitada por Perseu. Do sangue vertido, Medusa dá à luz duas criaturas míticas, uma delas, Pégaso, o cavalo alado que transporta o raio e o trovão de Zeus. Pégaso nasce da transgressão feminina da ordem patriarcal e de um trovão. A filósofa feminista Nancy Fraser usa essa imagem mítica do trovão para explicar como a actual pandemia ilumina as falhas do sistema sócio-económico, cultural e político. Esta descarga eléctrica provocada pela crise sanitária e o medo da doença é ampliada pela própria energia que produz, iluminando desde o Olimpo a ideia de que não é possível um novo normal e que o problema é precisamente a dita normalidade.

O vírus é assunto de deuses, semideuses e mortais. No entanto, tanto o acesso à profilaxia como as consequências pós-pandemia estão directamente ancoradas nas desigualdades sociais e económicas. A precarização da vida e a pobreza determinam quem sofre mais e quem sofre menos, quem vive e quem morre. Assim, não podemos fixarmo-nos em lógicas abstractas de solidariedade, nem em ideias compartimentadas de justiça social. 

Prevalece uma hierarquia de género, dentro e fora de casa, fruto da tolerância institucional face à violência e da normalização do racismo. O combate ao trabalho informal feminizado, exercido maioritariamente por mulheres migrantes e por mulheres portuguesas afrodescendentes (restauração, hotelaria, limpeza, agricultura), não pode continuar a ser uma nota de rodapé nas políticas públicas de combate às desigualdades e violência de género.

O relatório do Fundo de População das Nações Unidas, Covid-19: Um Olhar para o Género, reporta que mundialmente as mulheres estão mais expostas à discriminação e ao risco de contágio porque representam 70% da força de trabalho nos serviços sociais e de saúde. A violência machista é estrutural e exercida de forma camuflada pelos sistemas económicos e políticos. Alguns governos e grupos anti-direitos humanos estão a aproveitar a crise da covid-19 para propor e aprovar leis contra a autodeterminação sexual das mulheres. Na Polónia, o Parlamento tem estado a debater projectos de lei que limitam o acesso ao aborto e que tornam o ensino da educação sexual a menores de 18 anos um crime punível até três anos de prisão.

Restrições de saúde pública decididas em contextos de pandemia comprometem os direitos e o bem-estar das mulheres no que toca à gravidez, parto e direitos sexuais e reprodutivos: mais de 47 milhões de mulheres podem perder acesso aos meios de contracepção, levando a cerca de 7 milhões de gravidezes indesejadas nos próximos meses. Este tipo de dados permite-nos consubstanciar a ideia de que a violência de género é um processo estrutural e não apenas o somatório de acções individuais.

Em Abril de 2020, o Feminismos Sobre Rodas, os projectos VIVA e EIR, da UMAR, e a Produtora Filtro lançaram a campanha online Nem tudo de ficar entre 4 Paredes” com objectivo de fortalecer as redes de apoio e ampliar a circulação de informação sobre a violência doméstica, e que chegou a mais de 100 mil pessoas.

Somos as Medusas que se atrevem, insistem, resistem. Para cada casa, cada caso e cada corpo, colocar no centro da luta feminista, o cuidado da vida. Em breve, lançamos nova campanha, porque nem tudo tem de ficar entre quatro paredes

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