Muhammad Ali ensina-nos a derrotar a covid-19

Estamos a reabrir a sociedade, mas o novo coronavírus continua a ser uma mortífera ameaça. Pode parecer bizarro mas é no boxe que podemos colher a melhor lição estratégica para o derrotar. Essa estratégia chama-se rope-a-dope e foi testada em 1974.

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À entrada na “fase 2”, com o fim do confinamento, o reforço da “distância social” e a generalização da máscara na paisagem das cidades, continuamos inseguros, muitos inseguros. Se começámos já uma reabertura parcial da sociedade, o vírus não foi vencido. Permanece como mortífera ameaça. Basta olhar para o Brasil ou para os Estados Unidos. A palavra de ordem será contra o pânico, que leva à perdição, e tolerância zero com trumps e bolsonaros.  A passagem à “fase 2” é uma entrada em terra incógnita.

Dizem os historiadores que as pandemias têm duas formas de acabar. Um “fim médico”, quando baixam fortemente as taxas de contágio e a mortalidade. O “fim social” só ocorre quando desaparece o medo do vírus. Esperamos a vacina (quando?) e antivirais eficientes. Até lá, para usar a linguagem do boxe, estamos encostados às cordas.

Este não é um artigo sobre boxe mas sobre o que ele nos pode ensinar na luta com a pandemia. Não é tão bizarro como parece. Evoco um combate célebre, dito Rumble in Jungle, travado em Kinshasa, em Outubro de 1974, entre o campeão do mundo da época, George Foreman, e um ex-campeão regressado do “exílio”, Muhammad Ali (antigo Cassius Clay). O título e a licença de boxe foram retirados a Ali em 1966 por recusar o recrutamento militar durante a Guerra do Vietname. Só voltou a combater em 1971.

A táctica de Ali nesse combate ficou na História como rope-a-dope. Esta expressão é intraduzível: rope é corda, dope é drogado ou tonto. Terá sido criada após o combate por Dave Anderson, do New York Times, e depressa foi incluída no léxico do boxe… e da política internacional. Encostado às cordas diz-se de alguém encurralado. Mas pode estimular um raciocínio estratégico surpreendente.

Escrevia recentemente na Foreign Policy o politólogo Stephen Walt: “A América precisa da doutrina Muhammad Ali — nos casos de dúvida, a estratégia da política externa de Washington deveria ser o rope-a-dope.”

Que fez Ali perante Foreman? “Em vez do combate frontal e em vez de dançar à volta, encostou-se às cordas e deixou-o golpeá-lo (…) para sair das cordas e o pôr KO no oitavo assalto. (…) Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos usaram uma estratégia rope-a-dope contra a União Soviética.”

A estratégia

Ali foi um boxeur bailarino, com um fantástico jogo de pés. Dançava em torno dos adversários, iludindo os seus golpes e surpreendendo-os com a velocidade dos seus ataques. Em 1974, tinha 32 anos. Já não tinha a velocidade de outrora. Foreman, 25 anos, estava no auge da força. Ganhou o título em Janeiro de 1973, batendo o campeão Joe Frazier: encostou-o às cordas e massacrou-o em dois assaltos. O favorito nas apostas era Foreman. Por 4-1. E Foreman queria ganhar o combate depressa.

Chegamos ao rope-a-dope.  Explicou Anderson: “Ali deixou-se encostar às cordas, que absorviam os golpes, deixando Foreman cansar-se a esmurrar os seus braços e flancos. No oitavo assalto, Foreman estava exausto e Ali pô-lo KO. (…) As cordas foram o seu aliado e o adversário foi o tonto.”

O público de Kinshasa, fanatizado por Ali, gritava: “Kill him, kill him”, mas quase desanimava: a imagem era a de um Ali a levar pancada nas cordas. Aparentemente massacrado, Ali respondia com inesperados golpes perigosos. E provocava Foreman dizendo-lhe ao ouvido: “Não és capaz de mais?” Foi Foreman quem o contou mais tarde. Revendo os vídeos, percebe-se que Ali nunca perdeu o controlo do combate.

Os riscos da fase 2

A lição para a diplomacia ou para a guerra é clara: uma táctica defensiva pode frustrar os ataques do adversário e, desgastando-o, torná-lo vulnerável. Se o rope-a-dope inspira estratégias políticas pode também inspirar a nossa conduta perante o coronavírus. A covid-19 não é só uma doença, é uma ameaça à segurança nacional.

A fase do confinamento e da “distância social”, proibindo as concentrações de pessoas, teve um efeito positivo, diminuindo o contágio e evitando o colapso dos hospitais. O objectivo era este e não exterminar o vírus, que continuará activo e por muito tempo. E, mais importante ainda do que as máscaras, teremos de ser capazes de perseguir as pistas das contaminações para isolar rapidamente os novos e inevitáveis focos. Este foi o nosso primeiro ponto fraco.

O confinamento criou uma tensão entre o medo do contágio e a vontade de regresso à “normalidade”. Doravante, a maioria dos europeus vai enfrentar uma dupla ameaça para a qual não estão preparados. Primeiro, a possibilidade do regresso em força dos contágios (e das mortes), seja pelo simples aumento da mobilidade das pessoas ou por um relaxamento da vigilância. Chama-se a isto “baixar a guarda”. Em segundo lugar, temos estado obcecados com a saúde e é-nos difícil antever a violência da crise económica e social que nos vai atingir. O regresso do medo e da desconfiança voltam a ser um desafio.

Depois de um começo caótico, da gestão desastrosa de muitos governos, da subestimação do perigo e também de irresponsabilidade dos cidadãos, os europeus aprenderam a reagir mais racionalmente. A fase 1 cumpriu o seu objectivo. Estamos a entrar na nova fase, muito mais perigosa, em que tudo depende dos cidadãos. Mas depende dos cidadãos na medida em que estes confiem nos seus governos. E a primeira dificuldade dos governos vai ser dizer a verdade aos cidadãos.

Interroga-se Riccardo Viale, um filósofo italiano: “Cidadãos responsáveis? Não, mas prontos a obedecer a um governo em que confiem.” Será esta a pedra de toque política da próxima fase, em que se vão misturar a pandemia e a ressaca económico-social. Se a abertura tiver sido prematura, ditada pela ansiedade, uma segunda emergência com confinamento seria uma catástrofe.

Quando recorro ao rope-a-dope de Muhammad Ali estou apenas a fazer uma analogia, não uma teoria. Ali serviu-se das cordas para esgotar Foreman. Nesta fase, as nossas cordas chamam-se “distância social”, máscaras, mãos lavadas, testes, evitar viagens supérfluas e multidões. Todos sabemos as regras. Diminuir o contágio é o único meio que temos para “desgastar” o vírus, limitando a sua vertiginosa multiplicação.

No mais simbólico combate da sua vida, Ali não baixou a guarda uma única vez nem tentou abusar da sorte. Esperou até ao oitavo assalto para o KO. Nós precisamos da vacina para aplicar o KO ao coronavírus. Se ainda o não podemos exterminar, podemos evitar que ele nos extermine, até chegar o nosso “oitavo assalto”: rope-a-dope. É o que aprendi com Muhammad Ali.

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