Como reconfigurar o acesso ao ensino superior?

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Daniel Rocha

Na sequência do meu texto de opinião aqui publicado no início da semana, pude ler várias objeções à ideia de que cada instituição de ensino superior ou equivalente deveria cuidar do recrutamento dos seus alunos. Vou reagir a algumas delas, aproveitando para explicitar ideias acerca de uma reconfiguração do acesso ao ensino superior, a bem do debate. Eis as objeções, numeradas, e a minha resposta:

1. Num sistema de acesso gerido pelas próprias instituições de ensino superior, os candidatos teriam de percorrer o país para prestar provas em cada instituição a que quisessem candidatar-se.

É inverosímil que o ensino secundário tenha sido capaz de montar num par de semanas um sistema de avaliação à distância e o ensino superior, com ainda melhores recursos, não o seja. Um sintoma de que a avaliação à distância é possível e credível está no facto de o Governo, como se pode verificar no Decreto-lei n.º 14-G/2020, de 13 de abril, no art.º 8.º, n.º2, não ter declarado inconsequentes os procedimentos de avaliação que estão em aplicação no ensino secundário neste 3.º período (ou 2.º semestre). E contribuiu mesmo para a clarificação desses procedimentos com a publicação de um documento orientador próprio (cujas qualidades não cabe aqui apreciar).

Não se antecipa o que impediria as instituições de ensino superior de fazer o mesmo, propondo provas de acesso realizáveis não presencialmente. O candidato prestaria essas provas (escritas, orais, performativas, etc.) em sua casa ou em local adequado e não em digressão pelo país. Além disso, prestar uma prova por cada instituição prepara o candidato para a realidade da vida que é ter de enviar um curriculum vitae (CV) ou de deslocar-se para uma entrevista presencial por cada empresa em que pretenda trabalhar. Por fim, não temos de inventar a roda: um sistema de acesso como o que sugiro está a funcionar há décadas noutros países com territórios enormes, como os Estados Unidos da América. Como é que lá fazem?

2. Apesar de tudo, um exame nacional é igual para todos, o que atenua as desigualdades existentes. Ricos e pobres, do litoral ou do interior, dos colégios ou do público, todos vão fazer o mesmo exame.

Muitos parecem acreditar que, existindo provas nacionais para acesso e estando as instituições de ensino superior obrigadas à consideração dos resultados nelas obtidos pelos candidatos, ficam afastadas ou atenuadas as desigualdades nas condições de acesso. Isto é falso. Constata-se que mesmo na escola secundária mais inclusiva e mais preocupada com os seus alunos mais frágeis raramente se consegue fazê-los aceder a Medicina, a Arquitetura ou a Engenharia Aeroespacial. Isto não é argumentativo, é estatístico e está muito bem documentado (veja-se, por exemplo, aqui). Os quadros de pobreza, de baixa habilitação (sobretudo das mães), de reduzido acesso à cultura, de desemprego crónico, entre outros, são determinantes do “insucesso” a um ponto que quase nos permite afirmar que este é herdado, mais do que o resultado de falta de esforço próprio (de “mérito”, chamam-lhe alguns). Portanto, a desigualdade nas condições determinantes do “sucesso” ou “insucesso” dos alunos não é atenuada nem anulada pela existência de exames nacionais iguais para todos. Pelo contrário, estes tornam mais patentes essas desigualdades. De facto, as famílias funcionais e que apoiam incansavelmente os seus educandos são idílicas, mas não são as de todos os alunos (infelizmente, parece que nem são as da maioria); a indústria de explicações e de artefactos de preparação para exames é legítima, mas não está acessível a todas as carteiras; as ofertas culturais são, também elas, extremamente assimétricas no território nacional; inter alia. Isto deixa marcas. Mesmo que um excelente estudante, embora de contexto desfavorável, ultrapasse a triagem dos exames nacionais no final do secundário, provavelmente não terminará o 1.º ano no ensino superior por falta de condições económicas para pagar propinas, quartos, livros, transportes, alimentação, não obstante os apoios sociais escolares existentes. Isto também está bem documentado (por exemplo, aqui) e mostra que a mera existência de exames nacionais no final do secundário tem uma correlação fraca com a diminuição de desigualdades e com o “sucesso” no ensino superior. Portanto, enquanto provas de acesso e tais como hoje são, para quê mantê-los?

3. Se há desigualdade nas condições de realização de exames nacionais, também há desigualdade nas condições de realização de exames por instituição. Qual é, então, a vantagem de transferir essas provas para o ensino superior?

Sabendo-se que o que colocaria os estudantes realmente em condições equitativas no dia do exame nacional seria uma transformação enorme das sociedades e do seu modelo social e económico — tarefa hercúlea, que não parece ser desejada por muitos, que não obteve grande sucesso na maioria dos países do mundo e que teve um sucesso modesto nos países do dito estado social, como o nosso —, parece então não haver outra alternativa senão aceitar a fatalidade da desigualdade. Isto pode ser verdadeiro nalguns casos (um aluno competente mas daltónico nunca poderá ser piloto aviador), mas pode ser ultrapassado noutros (um aluno competente mas pobre pode vir a ser médico). Alguns agarram-se a alguma teoria fatalista de ocasião para argumentar que o combate à desigualdade é inútil. Mas outros, nos quais me revejo, creem que certas desigualdades são injustas e devem ser combatidas. Como?

Há opções políticas muito profundas a fazer para atenuar as desigualdades. No assunto em apreço, atualmente as famílias desfavorecidas acedem a medidas de discriminação positiva que visam compensar o ponto de partida em que se posicionam na “competição” social e económica. Alguns estudantes do secundário estão entre os que são apoiados direta e indiretamente, outros não. Todos farão o mesmo exame nacional, alcançarão os seus resultados e o sistema atual entregará ao ensino superior uma lista seriada de resultados obtidos em condições desiguais e com fraca correlação com a vocação e pré-requisitos dos examinandos para uma dada área (exceto, por exemplo, no ensino artístico e em educação física, em que se exigem outros requisitos). As instituições de ensino superior recebem listas nominais de ingresso e não fazem ideia se algum dos candidatos tem o perfil desejado ou condições para se manter no curso. Ora, parece-me preferível um sistema de triagem e acesso que seja da responsabilidade de quem admite (e não de quem entrega), pois é quem admite que sabe qual é o perfil que melhor se ajusta ao seu projeto científico, educativo e de formação. Isto não exclui que se impusessem às instituições de ensino superior, por via legislativa, medidas de discriminação positiva que abrissem as portas a alguns estudantes com debilidades socioeconómicas verificadas, mas com vocação e perfil para a área do curso a que se candidatam.

As vantagens são, portanto, estas: estaria garantida uma quota para alunos desfavorecidos, implementando-se assim uma medida de discriminação positiva, no acesso, muito mais eficaz do que a Ação Social Escolar do secundário; seriam recrutados os candidatos que melhor demonstrassem apetência e pré-requisitos para as áreas dos cursos almejados; retirar-se-ia ao ensino secundário o pendor propedêutico que ainda mantém e que faz dele um ciclo de estudos complexo, com missões, objetivos, regras, métodos, práticas e projetos heterogéneos, quando não conflituantes.

4. Como evitar a velha “cunha” num sistema de acesso gerido pelas próprias instituições de ensino superior?

As empresas que seguem o critério da “cunha” na admissão dos seus colaboradores têm o destino traçado. As universidades e politécnicos também. Ou os critérios são outros ou as instituições estão condenadas. Como noutras áreas, é necessário criar instrumentos e procedimentos que bloqueiem ou dificultem a “cunha”: os critérios de admissão terão de ser definidos e transparentes; os procedimentos, os calendários, os requisitos terão de ser totalmente claros; os resultados das avaliações dos candidatos terão de ser públicos e escrutináveis, garantindo-se ainda o direito à reclamação; as instituições terão de adotar mecanismos de decisão verdadeiramente colegial e não unipessoal; os júris de provas de admissão terão de ser diversificados e não endogâmicos; as instituições de ensino superior poderão, no limite, entregar o recrutamento dos estudantes a empresas externas da área dos recursos humanos, definindo a montante os perfis desejados; todas estas práticas deverão poder ser auditadas em qualquer momento pela inspeção de ensino e por outros auditores externos. Dito isto, deixo esta pergunta para reflexão: Quem pode garantir que no atual sistema nunca alguém acedeu ilegitimamente ao ensino superior? E foram os exames nacionais que impediram isso?

5. Agravar-se-ia um problema: a gigantesca falta de comunicação entre ensino secundário e superior. Imaginemos que, sendo as universidades a determinar o critério, uma universidade colocaria como critério o conhecimento x, ao passo que outra colocaria o conhecimento y. Isto conduziria a uma dispersão tal que ninguém no secundário se entenderia com o que haveria de ensinar.

Esta objeção é dura e envolve dois problemas distintos: o da variedade e o da imprevisibilidade daquilo que seria avaliado nas provas de admissão. Contudo, a objeção mantém uma visão do ensino secundário como propedêutico do ensino superior. O secundário tem de ter um projeto de vida próprio que não o reduza a um gigantesco centro de explicações para aceder ao ensino superior. É quando se reduz a um papel meramente propedêutico que o secundário se descaracteriza, pois a variedade de exigências das muitas instituições de ensino superior não é atendível na prática pelo ciclo de estudos imediatamente anterior. O sintoma disto é o afinadíssimo coro de vozes das universidades e politécnicos que considera que os alunos não chegam ali bem preparados.

Regressando ao problema da variedade de matérias a que um candidato poderia ser sujeito, a solução pode ser esta: tal como o Instituto de Avaliação Educativa, I.P. (cujo capital de conhecimento não poderia ser desprezado numa mudança como esta) dá a conhecer, nove meses antes, as características das provas a que os futuros examinados vão submeter-se, o mesmo teria de ser feito pelas instituições de ensino superior. Por exemplo, no máximo até dezembro de cada ano, cada instituição publicaria os pré-requisitos exigidos, as provas escritas, orais ou performativas a realizar, os restantes mecanismos de avaliação envolvidos (cartas de motivação, entrevistas, dinâmicas de grupo, etc.), os calendários, os regimes das provas (presencial, à distância ou híbrido) e todas as informações que tornassem transparente o que seria necessário para aceder a um dado curso. Os candidatos escolheriam as provas e instituições em que previsivelmente teriam maior sucesso e teriam meses para se preparar para elas. Sim, teria de ser acautelada alguma convergência entre o ensino secundário e o ensino superior, definindo-se um core curriculum avaliado nas provas de admissão e mantendo-se outras componentes definidas localmente por cada instituição. No modelo que estou a esboçar, a independência do secundário em relação às provas de admissão seria tal que, por hipótese, as provas poderiam ser realizadas antes de o aluno terminar o secundário, dando tempo às instituições de ensino superior para concluírem o processo de recrutamento antes de setembro. Pensemos por analogia: os exames de condução só se fazem em junho e julho? E, porém, é necessário saber ler, interpretar, conhecer e raciocinar para os resolver, coisas que é no básico e no secundário que se ensinam.

Quanto à seleção de matérias pouco ortodoxas para as provas de admissão, acredito que funcionarão as regras do mercado: se alguma instituição elaborar provas sobre assuntos totalmente imprevisíveis e estranhos aos candidatos, ficará sem colocados no 1.º ano no letivo seguinte. Por isso, creio que o interesse das universidades e politécnicos não será criar provas demasiado afastadas do core curriculum prescrito e do que se aprende realmente no secundário, sob pena de terem sérios problemas de sobrevivência.

Espero que estas considerações possam contribuir para um debate tranquilo acerca da reconfiguração futura do acesso ao ensino superior, agora que foi perdida uma oportunidade de ouro para mudar um sistema completamente anacrónico. Há muitos prós e contras e estou ciente de outras objeções que também merecem reflexão. Nenhuma das ideias aqui avançadas reclama certeza e todas são suscetíveis à crítica. O que não pode é este ser um assunto tabu em Educação. Como professor do ensino secundário, posso afirmar que tenho pergaminhos em preparação para exames nacionais: por duas vezes festejei que alunas minhas tivessem 20 valores na prova, o que é excecional, e muitas mais vezes festejei que outros alunos conseguissem ter dez valores na prova, o que era difícil nas suas circunstâncias. Mas reconheço que é muito estreita esta tarefa de treinador de fundo pelas inúmeras matérias e tópicos e conteúdos e competências e habilidades que os monstruosos programas do secundário insensatamente abarcam. A ação inclusiva, a consideração dos ritmos e estilos de aprendizagem de cada aluno, a complexidade e as subtilezas de certos tópicos programáticos, o desenvolvimento de trabalho colaborativo e de projeto e outras coisas bonitas que fazem verdadeiramente aprender não são compatíveis com a correria por quilómetros e quilómetros de coisas a “dar” com exame nacional ao fundo. Basta!

Nota: O autor escreve de acordo com o AO.

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