Os 30 milhões que António Costa anunciou para a cultura “não são uma boa notícia”

Verba que o primeiro-ministro quer entregar às autarquias resulta da reprogramação de fundos comunitários. Em causa ficam projectos já aprovados no âmbito do programa Cultura para Todos e que estavam muito perto da contratualização. Movimentos representativos do sector confessam “apreensão”.

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António Costa esta sexta-feira em Coimbra com a ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa NUNO ANDRÉ FERREIRA/LUSA

Os 30 milhões de euros que António Costa pôs ao dispor dos municípios esta sexta-feira, para que estes possam programar actividades culturais e assim reanimar "um dos sectores que foram mais duramente atingidos pela crise", deverão ser subtraídos a projectos do programa Cultura para Todos, alguns dos quais já tinham sido aprovados e deviam ser contratualizados ainda este mês.

“Não é de todo uma boa notícia”, diz ao PÚBLICO Elisabete Paiva, da Rede – Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea, que foi alertada para esta situação por uma autarquia da Comunidade Intermunicipal da Lezíria do Tejo e confirmou entretanto que as mesmas instruções chegaram às comissões de coordenação e desenvolvimento regional do Norte e do Centro, vindas do Ministério da Coesão Territorial. Na região do Alentejo, acrescenta esta produtora cultural, a execução do Cultura para Todos estava mais avançada, sendo agora incerto se a contratualização que deveria acontecer ainda em Maio ficará por concretizar. “Recebemos este anúncio com muita apreensão. É preocupante que se troque um trabalho pensado e desenvolvido em articulação com os agentes no terreno, e que se destinava a públicos tradicionalmente excluídos, por uma linha de financiamento decidida em cima do joelho para gastar em animação cultural de Verão”, argumenta a dirigente da Rede, e também directora artística da associação Materiais Diversos. 

Contactados pelo PÚBLICO, nem o gabinete do primeiro-ministro nem o gabinete da ministra da Cultura quiseram esclarecer a proveniência destes 30 milhões de euros que António Costa anunciou de surpresa, um dia depois de 17 vigílias um pouco por todo o país terem tornado ainda mais público o protesto da comunidade artística. Por esclarecer está também que ministério gerirá este novo financiamento, com uma dotação cerca de 18 vezes superior à linha de emergência de 1,7 milhões de euros que a tutela disponibilizou para amparar um sector quase integralmente paralisado pela pandemia de covid-19. Das 1025 candidaturas a esse apoio excepcional para artistas e estruturas “em situação de vulnerabilidade”, recorde-se, apenas 311 serão contempladas. A lista das entidades beneficiárias, bem como daquelas que ficaram excluídas, não foi divulgada e, apesar dos insistentes pedidos do PÚBLICO nesse sentido, o Ministério da Cultura não prestou até ao momento qualquer esclarecimento adicional sobre a distribuição regional ou por área artística do fundo de emergência.

Tal como a Rede, também o Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos (Cena-STE), que já por várias vezes se manifestou contra a insuficiência do apoio disponibilizado pelo Estado, tem mais interrogações do que certezas sobre esta nova linha de 30 milhões. Para o dirigente Rui Galveias, os “apoios são todos muito bem-vindos”, mas “o problema é que [o Governo] chuta para a municipalização da cultura e demite-se das suas responsabilidades de fazer uma intervenção séria e de fundo” no sector.

“As recentes práticas de alguns municípios no que toca às actividades culturais canceladas e reagendadas, práticas essas que deixaram milhares de trabalhadores/as do sector sem rendimento, e a discricionariedade das políticas aliada à ausência de uma visão estratégica para a cultura em muitos territórios” são também os argumentos do recém-criado movimento Unidxs pelo Presente e Futuro da Cultura em Portugal para reagir com “preocupação” ao anúncio de António Costa. Esta plataforma, que agrega 14 estruturas representativas e grupos formais e informais do sector (entre as quais a Rede e o Cena-STE), decidiu esta sexta-feira avançar com pedidos de audiência ao primeiro-ministro e ao Presidente da República, aos quais lembrou, em comunicado, que “nos últimos dois meses não foi implementada nenhuma resposta que garantisse protecção social aos/às trabalhadores/as da cultura, nem foi criado nenhum apoio significativo para enfrentar a situação de emergência (...), apesar dos alertas públicos sobre a gravidade da situação”.

AO PÚBLICO, Elisabete Paiva lamenta que este anúncio com que o primeiro-ministro esperava talvez serenar os ânimos reitere a “enorme ambiguidade com que o orçamento da Cultura é gerido”, lembrando que a ministra da Cultura afastou por várias vezes qualquer possibilidade de reforçar o apoio de emergência, e que estes 30 milhões teriam permitido torná-la efectivamente útil. “Nunca há dinheiro, mas de repente sacam-se estes coelhos da cartola. Isto mostra um profundo desrespeito pelo sector”, diz. A dirigente da Rede critica ainda a “falta de diálogo” com os agentes: “Quando chega a altura de pensar em medidas, nunca contam com a nossa experiência no terreno. Entregam verbas preciosas aos autarcas, que na sua maioria não estão, infelizmente, habilitados para tomar decisões nesta área – é um problema que tem de ser admitido e que tem de ser resolvido.”

Pontos de interrogação

Na sua intervenção em Coimbra, o primeiro-ministro limitou-se a sugerir que estes 30 milhões de euros servirão para que “os municípios, que são dos maiores investidores na cultura do nosso país, possam dispor de condições” para realizar “espectáculos musicais, por exemplo, quer ao ar livre, quer em espaço coberto”. Sobre o período de vigência deste financiamento, ou sobre os critérios que presidirão à sua atribuição, nem uma palavra: Costa saiu do Convento São Francisco, onde participou, junto com outros ministros, num encontro com a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), sem responder a questões dos jornalistas.

Por esclarecer fica também se as autarquias poderão recorrer a estes 30 milhões para pagar os espectáculos que tiveram de ser reagendados, como obriga o diploma aprovado na Assembleia da República na quinta-feira, ou se apenas poderão recorrer a esta verba para contratar novos espectáculos.

Ao lado do presidente da ANMP, Manuel Machado, António Costa lançou a novidade dos 30 milhões depois de dizer que queria “acelerar a execução dos 1500 milhões de euros que ainda estão por executar dos fundos comunitários” no âmbito do Portugal 2020 e encontrar formas de “aplicar bem os 300 milhões de euros” da Europa que poderão ainda ser reprogramados.

O encontro entre Governo e ANMP, que tinha já sido pedido pela associação que representa os municípios portugueses, é mais um ponto do circuito que Costa anda a percorrer, “de reuniões com todos os partidos políticos e parceiros sociais”. O objectivo, explica o primeiro-ministro, é elaborar um Programa de Estabilização Económica e Social que terá tradução no Orçamento Suplementar a apresentar em Junho no Parlamento. com Isabel Coutinho

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