O que está a falhar no combate ao coronavírus? A falta da empatia popularizada

Nenhuma doença precisa de um bode expiatório. Nenhuma acção tendenciosa se escusa. Perante as doenças, somos todos vítimas. Perante as discriminações, devemos ser missionários da empatia, verdade e imparcialidade.

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Paulo Pimenta

No dia 2 de Março, que marcou o começo do surto do covid-19 em Portugal, eu, como estudante chinesa de mobilidade, estava em Lisboa e decidi ficar no país para acabar a mobilidade que duraria até ao fim de Julho. Na altura, os episódios de discriminação contra chineses registados em Portugal ainda eram raros, enquanto já estavam a aparecer atitudes preconceituosas e hostilidade contra nós noutros países. Sentia sorte por estar aqui, segura das discriminações. Mas com o tema do coronavírus a ser tudo na vida, as coisas mudaram em Portugal. Comecei a saber de mais casos de discriminação que aconteceram a amigos chineses, a ver cada vez mais comentários discriminatórios a aparecerem em sites portugueses.

Depois de ter sido chamada coronavírus numa rua em Toledo porque estava de máscara quando esta se demonizou pela maioria dos europeus e de ter sido encarada com olhar ofensivo numa rua em Lisboa por ter tossido duas vezes ao sentir comichão na garganta — episódios que não passavam de reacções ignorantes, mas aceitáveis, face ao medo pelo vírus —, há uns dias fiquei chocada ao ver o Jornal da Tarde, na RTP: numa entrevista, um menino cantou “Ai a minha vida... este coronavírus veio para Portugal, foi jogado pelos chineses. Eu mando pô-lo fora!” No fim da entrevista, a jornalista perguntou quem inventou a letra e o menino respondeu: “Nós, os ciganitos.”

A entrevista realizou-se no contexto de um projecto que procura esclarecer a situação do vírus em bairros mais pobres de Algarve. No entanto, a minha preocupação é outra: é essencial a democratização do conhecimento científico sobre o vírus, mas a campanha contra a discriminação não se deve ignorar, visto que a doença pode desaparecer, enquanto o preconceito, já enraizado, nunca se elimina facilmente.

Todas as experiências de discriminação — desde as minhas às de outros chineses que já presenciei — deixaram-me chocada pelo facto de a ideia de a China ser culpada por este vírus já ter uma divulgação tão alargada e estar tão arreigada na cabeça de meninos que talvez ainda nem saibam ler. Sinto-me feliz por aquele menino de olhar inocente se manter, sob o apoio social, a salvo do vírus. Mas triste porque foi “contagiado” sem consciência por um preconceito espalhado entre a comunidade. O menino pode não estar a perceber a conotação hostil da letra contra uma raça, mas infelizmente ninguém o corrigiu. Estou com receio que, vivendo num ambiente assim, com preconceitos como “o outro é inimigo” e com toda a gente de braços cruzados, apareçam cada vez mais pessoas com atitudes ainda mais tendenciosas e agressivas para com uma comunidade e um país.

Quando o novo coronavírus se divulga, o vírus mental representa um risco de contágio mais forte. Quando cada vez mais pessoas consideram a China culpada, há risco de se justificarem acções como o ataque de fezes contra dois alunos chineses, recentemente registado na zona de Picoas, em Lisboa, a atitude indiferente da polícia ao caso, a canção inapropriada divulgada, etc. Num mundo de incompreensões e discriminações, somos cúmplices. Neste mundo, uma propaganda enganadora, uma expressão preconceituosa, um olhar discriminatório podem ser uma bomba-relógio.

Estamos a falhar na descontaminação contra discriminações: falhou a família na educação da igualdade, falhou a RTP em transmitir ideias inapropriadas ao público e em mostrar a falta de empatia pelos chineses, falhou toda a sociedade ao não mostrar uma atitude dura na defesa de um grupo vítima de discriminação. Estamos a falhar na empatia.

Quando começou a circulação da teoria de que a China era responsável por tudo e das críticas irresponsáveis contra os chineses, estas foram rapidamente aceites por muitas pessoas, sem perceberem o que se esconde atrás da propaganda, sem duvidar da autenticidade das notícias. Ninguém culpava um país pelos vírus do HIV, da gripe H1N1 ou do MERS-Cov, que causaram à humanidade danos incompensáveis. Ninguém tentou perceber que o vírus é politizado e utilizado como ferramenta de propaganda para atacar um país, uma etnia e cultura. Ninguém quis admitir que foram os profissionais de saúde chineses, os cidadãos chineses e o Governo a, perante uma nova doença e incertezas, tacteando nas trevas, lutar na linha da frente contra o vírus.

Quando as publicidades dizem “Somos folhas da mesma árvore”, “Ficamos ligados” e “Por si e por todos”, sinto-me isolada: parece que eu, o meu país e o meu povo somos excluídos da empatia e união mundial, que os nossos esforços no combate ao vírus não merecem a atenção e defesa contra os sentimentos xenófobos.

Nós, chineses, sentimos a indignação com as críticas infundadas, discriminações e desprezo por aquilo que o Governo e o povo fizeram. Sentimos a urgência da empatia pelo facto de sermos, como qualquer um que sofre com a pandemia, vítimas. Queremos que todo o mundo saiba que os chineses estão a sofrer incompreensões e discriminações, que os tratamentos injustos para connosco devem ser levados a sério.

Somos diferentes, mas partilhamos a mesma afectividade na luta contra o coronavírus. Ter feições chinesas, falar o idioma chinês e ser chinês nunca podem ser a razão para o ataque racista. Nenhuma doença precisa de um bode expiatório. Nenhuma acção tendenciosa se escusa. Perante as doenças, somos todos vítimas. Perante as discriminações, devemos ser missionários da empatia, verdade e imparcialidade.

Dias melhores estão a avizinhar-se? Para os grupos de risco da covid-19, sim. Mas para os grupos de risco no que diz respeito à discriminação e à xenofobia, esses dias ainda estão longe. Ficamos à espera da empatia popularizada.

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