Crítica às críticas da desobediência por pessoas idosas

Face à possibilidade de desobediência, em vez de criar condições para criticar os idosos por comportamentos desadequados, o estado de calamidade deve tornar-se uma oportunidade para se criarem condições para estes viverem com autonomia e em segurança.

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PAULO PIMENTA

Lévinas, explicando o existencialismo de Heidegger sobre a relação entre tempo e morte, diz que as pessoas vivem o tempo a partir da relação existencial com a possibilidade de morrer. Por esta razão, no tempo, a morte é vivida como um ser adiante de si, pois algum dia morre-se de vez, mas não ainda por enquanto.

Acalmar a gravidade desta percepção é possível através de duas formas de ser no mundo: o cuidado e o quotidiano. O cuidado, por ser uma resposta à possibilidade de não estar mais no mundo; o quotidiano, por ser o lugar da inconsciência do ser no mundo, onde a tagarelice distrai a consciência.

Com isto, proponho o argumento de que o estado de calamidade, apesar do alívio nas anteriores medidas de confinamento, vai continuar a provocar alterações significativas na percepção que as pessoas idosas fazem da possibilidade de morrer e de viver em solidão. Entendo que, na nossa cultura, a morte tem um peso simbólico semelhante ao de solidão. Se quisermos, morrer é viver para sempre em solidão, assim como viver em solidão pode tornar-se, para quem a sente negativamente, uma espécie de morte lenta.

Assim, se o cuidado e o quotidiano podem ser interpretados como formas de superar a gravidade da morte e da solidão, então é legítimo compreender a desobediência das pessoas idosas às regras impostas pelo Governo, de forma tão radical (sem nenhuma alternativa). Se lhes pedíssemos uma justificação, responderiam como o filósofo: algum dia se morre de vez, mas não ainda por enquanto.

Ao mesmo tempo, o estado de calamidade pode aumentar, ainda mais, a desigualdade entre pessoas idosas, entretanto criada com o confinamento: quem vivia isolado ficou, ainda mais, isolado, devido à redução da rede social (a vizinha não vem visitar; a empregada não vem trabalhar); quem tinha doenças crónicas ficou, ainda mais, doente, devido ao adiamento de cuidados programados (consultas, exames, cirurgias); quem estava institucionalizado ficou, ainda mais, institucionalizado, devido à exposição ao vírus e à proibição de visitas; quem não tinha literacia digital ficou, ainda mais, iletrado, num contexto em que as soluções digitais se tornaram uma alternativa para viver o quotidiano e o cuidado.

Com este outro ponto de vista, pretendo alertar para o facto de as medidas de mitigação da propagação do vírus, mesmo em estado de calamidade, poderem estar a ter um impacto em alguns idosos, que é oposto ao seu objectivo: proteger a vida das pessoas, física e psicológica. Ao mudarem radicalmente os modos mais simples de lidar com a existência (o quotidiano, o cuidado), estas medidas podem estar a afectar a percepção que os idosos fazem do tempo que lhes resta, obrigando-os a ver a morte e a solidão mais próximas e, por isso, a desobedecerem às normas impostas sem alternativa.

Face à possibilidade de desobediência, em vez de criar condições para criticar os idosos por comportamentos desadequados, o estado de calamidade deve tornar-se uma oportunidade para se criarem condições para estes viverem com autonomia e em segurança; por exemplo, comunicar bem o atendimento prioritário em estabelecimentos comerciais e serviços públicos; publicitar dicas práticas e simples nos meios de comunicação mais visualizados; reforçar as equipas de proximidade nas áreas da saúde e de cuidado; higienizar permanente os espaços públicos como jardins, praças, cemitérios, lugares de culto. Enfim, assumir sem preconceitos que a população idosa está aí e está para durar.

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