O Presidente da República e a Constituição

A questão que se coloca é se Marcelo merece um apoio do universo eleitoral do PS ou se, pelo contrário, os socialistas deverão pensar numa outra candidatura. A nossa opinião é que o PS deve seguir o caminho anterior – não ter um candidato.

O tempo que vivemos apresenta-se muito apartado, nas preocupações, entre o comum dos cidadãos e as elites políticas. É natural que assim seja, cada português coloca a saúde da sua família e a sua sobrevivência económica à frente de todas as outras questões. Os políticos, os que fazem opinião, aqueles a quem cumpre a saúde da nossa democracia, preocupam-se, e bem, para além das primeiras, com outras coisas que são, da mesma forma, essenciais para o nosso futuro – a saúde da nossa democracia, a qualidade da governação e o funcionamento das instituições.

Acontece que, nos dois campos, a maioria dos portugueses entende que o atual Presidente da República exerceu com dignidade, proximidade e com equilíbrio o mandato que agora termina. E, perante esta circunstância, intuída pelo primeiro-ministro, não é novidade para ninguém que António Costa diga, de forma indireta, que Marcelo Rebelo de Sousa será reeleito para um segundo mandato.

A questão que se coloca antes desta visão pragmática da situação é se Marcelo merece um apoio do universo eleitoral do PS ou se, pelo contrário, os socialistas deverão pensar numa outra candidatura. A nossa opinião é que o PS deve seguir o caminho anterior – não ter um candidato.

Nunca tivemos simpatia pelo exercício da atividade de comentador de Marcelo Rebelo de Sousa e poucas razões indicamos para uma valorização positiva do exercício presidencial. Mas esta nossa análise prende-se com o entendimento que fazemos do cargo, com o anacronismo que resulta da eleição direta do Presidente, da sua disfuncionalidade.

Quando lemos os diários das sessões da Constituinte poderemos identificar três razões que atravessam a forma esdrúxula que levou ao nosso estimado regime semiparlamentar (ou semipresidencial). A primeira advinha do facto de se querer impedir a centralidade da figura do primeiro-ministro, resultado da construção constitucional de 1933 e que Salazar levou ao extremo na manipulação de Américo Tomás; a segunda advinha do facto de estarmos a construir um regime a caminho da democracia mas onde ainda constava um Conselho da Revolução e a necessidade de um equilíbrio de poderes; a terceira, não menos importante, a necessidade de se potenciar o poder moderador sem que este resultasse de uma partidarização excessiva do órgão de soberania primeiro.

A revisão do início da década de 1980 normalizou o desenho institucional da República, mas não se foi ao ponto de fazer avançar o poder determinante do Parlamento na construção das soluções políticas.

A função presidencial foi, ao longo destas décadas, exercida de forma a provocar estorcegões constitucionais. A invasão presidencial da governação, com Eanes; a negação de uma solução parlamentar de governo entre o PS e o PRD, por Soares, que haveria de levar às maiorias de Cavaco; a exoneração de Santana e a negação da maioria parlamentar que o suportava; a tentativa, não conseguida, de Cavaco de impor a governação de Pedro Passos contra o Parlamento; a construção de uma leitura dos poderes constitucionais com uma vertente populista que foi iniciada por Soares e ampliada por Marcelo, tudo isto leva-nos a questionar a figura do Presidente nos termos que a Constituição hoje lhe concede.

A nossa opção pelo parlamentarismo, a reivindicação de um colégio eleitoral superior que sirva para eleger personalidades que não resultem da luta partidária ou da emergência comunicacional, permite-nos voltar a colocar a necessidade de uma ponderação constitucional da eleição direta do inquilino de Belém.

A eleição anunciada de Marcelo vai trazer um outro problema ao nosso regime e à realidade política que vivemos. A sua matriz ideológica joga pouco com a do primeiro-ministro, mesmo que se aproximem algumas leituras centralistas da governação. A dificuldade de governar, o cansaço nítido de alguns protagonistas, a total inabilidade, até incapacidade, de outros (menos), para olhar o futuro com ambição, trarão a Costa, depois do excelente e individual desempenho na fase primeira do combate à pandemia, problemas e dúvidas relevantes.

Onde estará Marcelo perante as fases seguintes de emergência e calamidade? Que leituras faz do país para anteciparmos um pouco do que pode ser o seu desempenho? O que tivemos até agora, nestes quase cinco anos, foi intuição somada a uma grande inteligência que nem sempre foi mesclada de ponderação. A sua quarentena autoimposta foi disso exemplo, sabendo-se hoje que o primeiro de nós ponderará sempre ficar em casa se for preciso morrer na frente de batalha.

Ninguém nos garante que Rui Rio não fica amigo e simpático para Marcelo, que este não regressa ao berço e deixa de ter Morgado e Mesquita Nunes a ameaçar a sua história de marca na direita portuguesa. Nunca esquecer que um homem de direita nunca acha qualquer piada à governação da esquerda, porque não é natural, porque advém de uma invenção recente que atenta contra a sua (deles) leitura antropológica.

A única coisa que os portugueses podem pedir, perante a realidade que vivemos, é que passem rápido os meses que virão. Que o Governo tenha a ousadia de olhar o futuro que nos espera. Que Costa possa somar à brilhante leitura tática uma visão estratégica que não seja só o resultado de um regresso tosco à normalidade. 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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