Juízes entendem que o depoimento da filha não é suficiente para condenar o pai por violação

Tribunal da Relação de Évora absolveu homem que fora condenado a oito anos e meio de prisão por agredir e violar a filha. Juízes não poupam criticas ao Ministério Público e falam em falta de provas para sustentar a acusação.

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Enric Vives-Rubio

O Tribunal da Relação de Évora absolveu um homem de 58 anos que tinha sido condenado, em Abril de 2019, pelo Tribunal de Setúbal, a oito anos e meio de prisão por agredir e violar a filha menor, noticiou esta quarta-feira o Jornal de Noticias.

O caso começa com uma denúncia da filha contra o pai por agressões em Novembro de 2015. A jovem chegou mesmo a ser vista no Hospital São Bernardo, em Setúbal, tendo sido aberta uma investigação e a filha diz que foi também violada e agredida pelo pai, duas vezes, em 2012.

Entretanto, os juízes da Relação entenderam que o Tribunal de Setúbal apenas teve em conta o testemunho da vítima, que apesar de ter sido validado por uma perícia psicológica do Instituto de Medicina Legal durante a investigação e por um perito médico em julgamento, não é prova suficiente de que o pai cometeu aqueles crimes.

Acresce que, ao analisar o processo, os juízes da Relação alegam que o próprio depoimento da filha do arguido tem inconsistências, que não foram apresentadas mais provas para sustentar os factos e que a perícia psicológica apenas concluiu que a vítima não tem uma personalidade imaginativa que a levasse a incriminar o pai.

Os desembargadores entendem que é desta premissa que o Ministério Público (MP) parte para acusar o pai e ter como certo o depoimento da filha: “a menor não tem uma personalidade imaginativa, ela disse a verdade, logo o que ela diz é verdadeiro e não contraditável. E parte-se para uma análise que seria comparativa entre as versões da menor e a do arguido, com supostas regras de experiência comum, sempre aceites as da menor, nunca aceites as do arguido.”

De acordo com o acórdão a que o PÚBLICO teve acesso, os juízes da Relação realçam ainda o facto do exame médico a que a vítima foi sujeita em 2015, e que é usado como prova neste processo, não revelar agressão sexual, mas sim equimoses no interior das pernas que podem ser compatíveis com o facto de se ter magoado a arrastar moveis em casa de uma tia, como diz o pai, e não com pontapés, como acusa a filha.

No acórdão, os magistrados judiciais explicam por que entendem que faltam provas e não poupam críticas à investigação feita pelo MP.

Para os magistrados da Relação, a defesa do arguido “é logo parcialmente inviabilizada” quando a sua defesa alega que, em 2012 passaram o Natal no Algarve com os avós paternos e não em casa. A filha diz que os abusos ocorreram sempre em casa e que um desses abusos teve lugar no Natal de 2012. 

Faltam datas na acusação

No âmbito da acusação, o MP não verificou onde estavam ambos nesse período. E o Tribunal de Setúbal, que condenou o arguido, em resposta à defesa que levanta esta questão, diz que “a acusação não precisa datas que sejam infirmadas pela aludida deslocação”.

Lê-se no acórdão da Relação que é “aqui que surge um primeiro motivo de preocupação e perplexidade”. 

“Então não caberia à acusação provar a ocorrência do facto na casa do arguido? Ou em qualquer outro local, com a devida adaptação (alteração) factual? E ao arguido, sem que tal prova seja feita, nem é permitido criar uma dúvida sobre a ocorrência do facto naquele local? É-lhe imposto que prove que o crime não pode ter ocorrido, antes de o Ministério Público ter provado que ocorreu?”, questionam os juízes, que também não poupam criticas ao MP: “Permite perceber da razão por que as acusações modernas deduzidas pelo Ministério Público são genéricas, abstractas, sem clara indicação do local, data e modo de cometimento de crimes”.

E as críticas são justificadas: “O arguido nunca as pode impugnar de forma eficaz pois que fica sempre a ideia de que a acusação se mantém por não ter sido negada por beneficiar da ausência de concretização. Eu não concretizo, tu não te podes defender! O caso dos autos neste ponto é bem elucidativo. Uma acusação pós-moderna tem esta função! É uma narrativa difusa, diluída, não cumpre os requisitos mínimos do fair trial.”

Depois, os juízes da Relação realçam o facto de ser notório que “o depoimento da menor é sempre usado como parâmetro de apreciação da prova”.

 “Note-se que ele – depoimento - é sempre apresentado como fundamento único do juízo de prova e também como parâmetro único de credibilidade já que são as razões que a própria menor dá que delimitam a credibilidade dos restantes meios de prova”, lê-se, no acórdão que conclui: “Cria-se desta forma um círculo vicioso que parte desse depoimento sobre os factos para a ele regressar para justificar a sua própria credibilidade e também a não aceitação valorativa dos restantes meios de prova. Nem parte substancial dos relatórios elaborados – incluindo a perícia à personalidade - escapa a este círculo vicioso.”

No acórdão é feita ainda uma avaliação muito minuciosa da prova apresentada em tribunal pelo Ministério Público e como é que se chegou a uma acusação.

Na acusação, o MP diz que no relatório completo de episódio de urgência do Hospital São Bernardo, em Setúbal, consta que em 19 de Novembro de 2015, a menor foi ali conduzida por duas técnicas da Equipa Multidisciplinar de Apoio Técnico ao Tribunal (EMAT) devido a alegadas agressões físicas por parte do pai, ocorridas a 10 de Novembro.

E portanto, tendo recebido assistência médica, “verificou-se exibir apenas lesões traumáticas na face interna de ambos membros”. Sendo que na mesma altura, não foi sujeita a qualquer observação ginecológica naquele hospital, em virtude de ter reportado os dois abusos sexuais vaginais de que disse ter sido vítima, ao ano de 2012.

É com base nesta sequência de acontecimentos que o MP concluiu: “Compulsados os autos e salvo melhor opinião, parecem assim existirem alguns indícios que apontam para a prática de dois crimes de abuso sexual de crianças agravado, cometidos sobre” a menor, “actualmente com 15 anos de idade, por parte” do pai, “porquanto, o progenitor da menor teve efectivamente oportunidade de manter tal conduta ilícita, contanto que tinha a tutela e residia com a menor à data dos factos”.

E ainda se lê que, “pese embora a investigação não ter considerado como pertinente a realização na actualidade de exame pericial de natureza sexual à menor, considerando que em sede de inquirição a própria admitiu já ter mantido relações sexuais consentidas com um namorado, no decurso da adolescência, talvez não seja de todo despropositado se na situação em apreço, a menor possa agora ser sujeita a realização de perícia forense de natureza psicológica, com vista a avaliar a sua cognição ao nível global (maturidade), e em particular perceber se a mesma se encontra em sofrimento psicológico específico, bem como a sua susceptibilidade para fantasiar e/ou inventar factos de natureza sexual, por forma a aferir, de um modo mais balizado, da ocorrência ou não dos abusos sexuais a que se reportam os autos”.

Teve sorte?

E neste ponto os juízes da Relação chegam a ironizar que o arguido teve muita sorte por não lhe ser imputado também um crime de abuso sexual: “pois que as lesões nas faces internas dos membros inferiores muito mais compatíveis seriam com um crime desse género do que com umas ofensas corporais simples usando os pés como arma de agressão”.

De acordo com os magistrados, o relatório médico não prova que essas equimoses são consistentes com uma agressão de pontapés como alega a filha. Acresce que, segundo o acórdão da Relação, o MP ignorou ainda que já tinha existido um outro processo que envolveu a mesma menor mas contra a mãe.

A menor queixou-se de agressões por parte da mãe quando vivia com esta em 2013. A mãe assumiu que lhe bateu porque esta escondeu as faltas às aulas e as más notas. Houve até um acompanhamento da menor e quando a situação foi considerada estável, o processo foi encerrado.

A menor depois voltou a viver com o pai, passou a frequentar um colégio privado por indicação deste e terá sido aqui que começaram os problemas com a filha. “Porque tentou impor-lhe regras de conduta quer em casa, quer na escola.”

Para os juízes da Relação existiam testemunhos sobre o comportamento da jovem que primeira instância judicial ignorou e que atestavam a veracidade do depoimento do pai que referiu que a filha já tinha problemas comportamentais.

“O depoimento da menor foi ouvido integralmente por este tribunal, assim como as declarações do arguido. No depoimento da menor evita-se sempre que seja confrontada com o real na sua própria versão dos factos”, lê-se no acórdão da Relação, que acrescenta: “Ouvidas as declarações do arguido e o depoimento” da menor “constata-se que ambos poderiam ter sido mais livres e directos e, assim, mais esclarecedores, e que a menor não descreve de forma minimamente pormenorizada os factos da acusação, nem as agressões, muito menos os episódios de cariz sexual”.

Por todas estas questões, entenderam os juízes da Relação, absolver o pai por “clara ausência de provas” e “erro notório na apreciação da prova”.

Para os desembargadores da Relação “não se pode partir, para uma presunção simples, sem factos base e com uma regra tão geral como ‘este tipo de pessoa e neste tipo de crime fala verdade e quem a contraria mente’”. “É puro non sense”, lê-se no acórdão, segundo o qual, “sendo o depoimento da menor o único elemento probatório dos factos imputados ao arguido - não corroborado por qualquer outro elemento de prova, mínimo que fosse – não permite concluir pela afirmação de que existe prova de que os factos ocorreram tal como descritos na acusação”.

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