En guerre: começou a disputa pelo trabalho?

Em plena pandemia, exige-se que o Estado Social responda de forma contundente. A vulnerabilidade laboral agudiza-se, sobretudo em grupos onde as desigualdades já eram notórias.

En guerre é um filme de 2018, do realizador Stéphane Brizé, uma das referências atuais do cinema francês. É retratada a disputa, dura, pela manutenção de 1100 postos de trabalho. É um retrato cru da violência da lei do mercado, a que dita todas as regras em contexto laboral, com o Direito do Trabalho como principal travão ainda que incapaz de impedir todos os acidentes do neoliberalismo. Antes, em 2015, La loi du marché, outro filme do mesmo realizador e igualmente protagonizado pelo poderoso Vincent Lindon, punha o dedo nas mesmas feridas.

Agora, Vincent Lindon é um sindicalista aguerrido, temido na mesa negocial, firme na sua reivindicação, que mobiliza, mas cria também, os anti-corpos próprios dos heróis que não podem falhar. Na luta são pessoas, com famílias, com contas para pagar, que querem, exigem, justamente, trabalhar, pessoas que fraquejam, que têm medo, que precisam de sobreviver.

O mais recente filme de Brizé, ovacionado em Cannes e que passou, discreta e fugazmente, pelas nossas salas de cinema, merece ser recuperado. Apresenta-nos um quadro quase completo da desigualdade dos trabalhadores na disputa pelo trabalho:

  1. A cedência de alguns sindicatos ao patronato fragilizando o poder reivindicativo dos trabalhadores com posições mais coerentes e consistentes;
  2. A divisão entre trabalhadores, alicerçada no desespero provocado por uma greve e uma luta cujos frutos tendem a tardar;
  3. O impacto das decisões judiciais de sentido desfavorável – e daí a importância do recurso à via judicial de forma ponderada e estratégica para casos em que haja mais viabilidade de ganho de causa – que não podem interferir em opções gestionárias e das quais as empresas se servem como arma de arremesso em contexto de diálogo social.
  4. O machismo latente em relação à trabalhadora com mais visibilidade na luta e a acrescida dificuldade para as mulheres na conciliação do ativismo com a vida pessoal e familiar que decorre, também, da reprodução social de papéis de género. Note-se que o facto das desigualdades sociais serem mais notórias para as mulheres tem impacto na representatividade no movimento sindical, realidade que o filme, ainda que de forma subliminar, não deixa de espelhar.

Em suma, face a posições marcadamente desiguais (empregador versus trabalhador) é sempre fácil “dividir para reinar”. Cada dia de espera para trabalhadores fustigados por baixos salários e poucas oportunidades de emprego torna-se num poço sem fundo.

A desunião entre trabalhadores é um aliado forte da pressão da administração da empresa que enceta todos os esforços para chegar a acordos de cessação dos contratos.

A empresa, sob a capa da perda de rentabilidade, pretende fechar para se deslocalizar para outro país com mão-de-obra mais barata, apesar de ser lucrativa e de o grupo ter distribuído dividendos aos acionistas.

É um facto que esta não nos é uma realidade distante... Basta pensar que no mês de Abril, em plena pandemia (que está a arrastar o país para uma crise quase sem precedentes dada à especificidade dos seus contornos), os acionistas da Galp Energia aprovaram a distribuição de 580 milhões de euros em dividendos.

É um exemplo somado a outros, nomeadamente no setor bancário, em que, apesar de não ter existido distribuição de dividendos, os apoios estatais foram combinados com históricos de despedimentos coletivos. A injeção de 850 milhões de euros no Novo Banco, acompanhada da atribuição de prémios ao CEO, obscena para o comum dos mortais, faz pensar como o princípio jurídico da pacta sunt servanda, segundo a qual os acordos são para cumprir, parece só se aplicar a alguns.

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No filme, o acordo celebrado com os trabalhadores, dois anos antes da ameaça de despedimento coletivo e que lhes garantia os postos de trabalho, serviu apenas para abdicarem de direitos e para a redução dos custos da empresa. Na prática, uma mão cheia de nada e a promessa de indemnizações, indemnizações pequenas aumentadas, gradualmente, de forma a manietar trabalhadores angustiados sem perspetivas de voltarem a ingressar no mercado de trabalho.

Face a um retrato negro de falta de oportunidades feito pelos delegados sindicais, e em resposta, um dos representantes da empresa diz-lhes que se não têm trabalho na região têm que mudar de região. Eis o modelo vendido pelo neoliberalismo, a flexibilidade com todos os custos sociais a recair nos mesmos.

O trabalho é o centro da disputa pela democracia, através dele se garantem bens essenciais nos quais se alicerça a dignidade da pessoa humana. É no plano dos direitos laborais que se edificam e concretizam tantos outros direitos.

Em plena pandemia, exige-se que o Estado Social responda de forma contundente. A vulnerabilidade laboral agudiza-se, sobretudo em grupos onde as desigualdades já eram notórias, mulheres, trabalhadores migrantes, pessoas com deficiência. A precariedade penetra como uma praga nas relações laborais atípicas, cada vez mais tornadas regra (contratos a termo, temporários, período experimental, prestação de serviços); nas relações travestidas de trabalhado independente, como acontece no caso do trabalho desenvolvido através de plataformas digitais, Uber, Glovo, nas relações especiais de trabalho; nos “intermitentes” do espetáculo ou no trabalho doméstico e em atividades tipicamente associadas ao trabalho independente, como é o caso dos arquitetos ou dos jovens advogados proletarizados, obrigados a um subsistema próprio e desprotetor, a Caixa de Providência dos Advogados e Solicitadores, pelo que à margem da proteção social oferecida aos restantes trabalhadores, independentes e dependentes.

Por outro lado, o incremento do teletrabalho, resposta que se impunha para proteção da saúde e segurança no trabalho, contribuiu para instalar a confusão entre tempo de trabalho e de não trabalho, um tempo em que, por motivos já identificados, as mulheres voltam a sentir mais o peso. De acordo com um estudo do Eurofund, 18% dos trabalhadores indicou trabalhar durante o seu tempo livre para dar resposta aos pedidos das entidades empregadoras, tendo sido identificado o impacto nocivo sobretudo para trabalhadores com filhos pequenos.

O “lay-off” simplificado, extremamente penoso para os trabalhadores abrangidos pela perda salarial que implica e pouco escrutinável pela forma como foi desenhado, será, em muitos casos, uma ante câmara do desemprego, sobretudo se não for acompanhado de: i) uma fiscalização apertada – e, infelizmente, não é expectável que o seja dada a carência de meios humanos e materiais da Autoridade para as Condições de Trabalho –, e de  ii) apoios à reconversão da atividade de algumas das empresas que recorreram a esse instrumento.

Os dados do desemprego são alarmantes e a ameaça do desemprego é extremamente poderosa. Segundo um estudo recente do Observatório sobre Crises e Alternativas, o desemprego registado no final de março subiu 3% relativamente a março de 2019 e 8,9% face a fevereiro de 2020. As respostas estatais têm surgido sob a forma de apoios extraordinários relevantes e positivos, obedecendo a uma racionalidade certa de trazer o trabalho invisível para dentro do sistema, mas têm fissuras graves nas respostas aos grupos mais vulneráveis.

Não nos enganemos, a relação laboral é assimétrica e o reforço da proteção que confere – fortemente degradado no período da troika e não revertido – é imperioso para a atenuar. Ainda assim, esta resposta não chega para travar o desemprego. Só atacando as desigualdades provocadas pelo sistema capitalista se pode alcançar alguma justiça. E aí o caminho parece quase todo por fazer. Como recorda, numa entrevista recente, Alain Supiot:

“A crise sanitária sem precedentes que estamos a atravessar pode conduzir tanto ao melhor como ao pior. O pior seria que ela alimentasse as tendências já pesadas nas inclinações identitárias e transferisse para o nível coletivo das nações ou das pertenças comunitárias a guerra de todos contra todos que o neoliberalismo promoveu no nível individual. O melhor seria que esta crise abrisse, ao contrário da globalização, o caminho para uma verdadeira mundialização, isto é, no sentido etimológico dessa palavra: a um mundo humanamente habitável, que leve em consideração a interdependência das nações, sempre respeitando sua soberania e diversidade.”

No filme, a administração repete que estão todos no mesmo barco. A indignação dos delegados sindicais à provocação é legítima.

Antes como agora, e isto não é novidade, continuamos En guerre. A disputa pelo trabalho é uma disputa desigual e o barco de salvação nunca foi o mesmo.

A lógica neoliberal que preside à ordem institucional, a que subjuga o Estado à utilidade económica e fragmenta a solidariedade, é o centro do problema e encerra a solução.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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