Da Barata à Travessa: as livrarias não podem fechar

A sede do lucro imediato por parte de editoras e fornecedores, a sanha com que no mundo editorial e livreiro tudo se fez em nome do mercado – isso coloca hoje em risco a Barata, uma das mais icónicas livrarias de Lisboa. Mas não só.

Que esta pandemia veio alterar, em dois meses, hábitos enraizados, eis o que começa a ser óbvio nos mais diversos planos. Na minha perspectiva, a retórica dos “novos desafios” e das “novas oportunidades” não me convence. Muito se fala de teletrabalho, da capacidade de adaptação que muitos julgariam não ser possível. Todavia, essa capacidade de adaptação nasceu, primeiro, da urgência de saúde pública; segundo, da confiança depositada nas entidades competentes de que esta situação não seria um rasgão insuperável nas nossas vidas.

A metáfora da guerra serviu que nem uma luva: estarmos em guerra justificou o confinamento. Agora, a guerra continua e trata-se, no campo laboral, de uma guerra seríssima: não morrermos da cura. Trata-se de defender salários e as regras mais básicas dos Estados democráticos. Desde logo, o direito à liberdade, o direito a uma educação sólida. Confesso que a ideologia tecnológica que mais se funda na nossa sociedade atinge o coração e a alma da Democracia: o online não é a solução para as actividades culturais, é apenas uma ferramenta. Pode mesmo, se tido por milagre (como querem fazer-nos crer), tolher as liberdades. Da geolocalização ao tele-ensino, cegos pelos ecrãs das plataformas virtuais, o novo modus vivendi em que todos nos vigiamos uns aos outros faz perigar a democracia. Inutiliza a arma fundamental dos cidadãos na luta contra qualquer vírus: a liberdade.

Neste particular, tem especial importância, na cidade pós-covid que a Europa e o mundo projectam, esclarecer que não haverá vitória sobre esta pandemia se não mantivermos alguns hábitos antigos, alicerces da própria forma mentis que nos emoldura palavras e acções. O medo é o outro vírus a combater e, mais do que nunca, no que diz respeito ao mundo dos livros, é axial que as cidades saibam que quer a existência duma cidadania activa, quer o despertar para uma nova mentalidade, mais consciente, mais empenhada, passa pela manutenção de espaços comerciais que sejam, também, espaços culturais.

É o caso das livrarias. Sem elas, as cidades transformar-se-ão em meros espaços urbano-depressivos, já que o circuito das ideias se fecha. Urge regressar aos lançamentos, manter vivos os cursos livres, os debates, as sessões de leitura, insistir na frequência com que vamos beber um café e folhear livros, ou encontrarmo-nos com amigos, ou ouvir uma palestra. É urgente, para que não morramos da cura, alterar a lei das rendas, insustentáveis para estes espaços definidores de quem somos. Ninguém está sozinho neste combate: a sede do lucro imediato por parte de editoras e fornecedores, a sanha com que no mundo editorial e livreiro tudo se fez em nome do mercado – isso coloca hoje em risco a Barata, uma das mais icónicas livrarias de Lisboa. Mas não só.

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Aberta em 1957 na Avenida de Roma, a Barata corre o sério risco de fechar portas Miriam Lago (arquivo)

António Barata abriu ao público em 1957, na Avenida de Roma, essa livraria que corre o sério risco de fechar portas. Muitos são os que, num movimento espontâneo de solidariedade de bairro (e Alvalade e as Avenidas Novas, os seus habitantes, devem mesmo unir-se e encontrar formas de salvar este espaço comum de ideias e cultura – comprar na Barata, viver a livraria, entrar nela e perceber que espaço pode albergar dezenas de pessoas sem qualquer perigo para a saúde, já que o máximo de 50 pessoas dá margem de manobra), irão lutar por que esta nossa livraria não feche. O caso da Barata é simbólico. Ao contrário de cadeias livreiras como a Bertrand (e o fecho da Barata seria um péssimo sinal para a livraria Bertrand, porque abre um precedente), a Barata tem um reservatório pedagógico e moral assente na figura do seu fundador.

Em 1991, agraciado com a Medalha de Mérito Municipal, António Barata não foi esquecido pela edilidade então presidida por Jorge Sampaio. Ao conferir-lhe esse reconhecimento, Jorge Sampaio quis sublinhar o trabalho de resistência anti-fascista da livraria, consignando esse galardão não só ao fundador desta livraria, mas à própria cidade. Gesto simbólico, mas efectivo, pois a Barata gozava de um prestígio que, nos anos seguintes, mercê das alterações profundas ocorridas no negócio dos livros e no campo da educação, se diluiu.

Num livro de homenagem editado em Dezembro de 1994, António Barata – um perfil, aí encontramos textos de Francisco Espadinha, Mário Soares, Nuno Krus Abecassis, José Augusto-França, António Ramalho Eanes, Vergílio Ferreira, David Mourão-Ferreira, António Almeida Santos, Rubén de Carvalho, entre outros. Recupero, do texto de Francisco Espadinha, a ideia de que o livro e a figura do livreiro que foi António Barata são indissociáveis dessa outra realidade que é o livro impresso. Neste tempo em que muitos negócios irão fechar porque depois de dois meses de confinamento não houve liquidez, haverá lugar para as palavras de Francisco Espandinha? Estas: “O livro não tem os dias contados, nem os confins à vista [...]. Porque quer queiramos ou não, não são os monitores da informática actual ou os sistemas de leitura interactiva os suportes e os processos susceptíveis de se sobrepor ao exercício intenso e tranquilo que a leitura nos proporciona.” Mais adiante, escreve o editor da Presença: “O livro é um bem sem sucedâneo à vista. Ora, é dos livros assim encarados que me ocorre pensar, associando-os à vida de António Barata.” E refere, nessa simbiose entre o livreiro e o leitor, o combatente pela liberdade e a Barata, a sua livraria como símbolo de Lisboa, a capital importância cívica, política e cultural que esta livraria representa.

Em 2020, terá Fernando Medina a presciência de compreender o mesmo? Esperemos que sim. A Câmara Municipal de Lisboa não pode encimar um espaço como a Barata com o título “Loja com História” e, agora, virar-lhe as costas. Tem de apoiar financeiramente – o Turismo dos últimos anos deve ter dado folga financeira no orçamento camarário, e o pelouro da Cultura tem de fazer uso desse excedente –, suportando a Barata que tanto deu à cidade e ao país.

Defender esta livraria como outras – a Travessa, na Rua da Escola Politécnica, corre o risco de encerrar também – não é anacronismo, nem serôdio romantismo. É uma questão de defesa da liberdade e da democracia. Que esperamos? Ver a Barata dar lugar a uma loja de roupas? Ou a mais uma loja de artigos chineses? De Alvalade já se foram o King e o Londres e o Quarteto, espaços culturais que faziam leitores. Quem tem hoje trinta anos não tem ideia do que tais lugares representam. Para os que viveram o fascismo deve ser doloroso ver esta nova forma de apagamento da cultura – em nome da saúde pública!

É sob o signo da liberdade, como cidadãos empenhados, que devemos apelar com todas as nossas forças (e é preciso vir para a rua lutar! Fazer ouvir a nossa voz!) para que a Câmara Municipal de Lisboa não deixe cair a Barata e outras livrarias e espaços congéneres. A opressão cultural em que vivemos exige dos editores e livreiros o regresso a uma união que deve fazer a força. António Barata, Fernando Fernandes, Felisberto Lemos, Edmundo Costa, eis alguns livreiros que podem servir-nos de inspiração.

Que a Barata tenha a ajuda da Câmara de Lisboa, do Estado que deve ser providencial e que, mais do que ser benemérito, deve estar à altura desta instituição da cidade. A Barata saberá, com um programa cultural apontado ao futuro, corresponder ao investimento que se venha a fazer. Desde logo, irá continuar a luta em prol do livro e da leitura, contribuindo, como quis António Barata, para o desenvolvimento vertebrado de Portugal.

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