Não havia necessidade

A desinfecção de praias é uma actividade totalmente absurda. A praia é um ecossistema vivo e um processo deste tipo irá matar todos os seres vivos indiscriminadamente.

Existe em muitos de nós uma sensação de confiança quando vemos nos noticiários ou na imprensa imagens e notícias de alguém fardado a despejar algum tipo de desinfectante nas ruas das cidades, nos areais das praias e noutros locais públicos ao ar livre. Há um instinto que nos diz que é esse o caminho, que as autoridades estão a tomar as atitudes certas para nos protegerem.

Será isto verdade? Faz sentido desinfectar ruas e praias, como aconteceu recentemente em São Martinho do Porto? Ou este gasto de tempo e de recursos é excessivo, desnecessário e apenas nos cria uma ilusão de segurança com mais efeitos colaterais prejudiciais do que benéficos?

Há muito que a biologia nos ensinou que nós nunca estamos sozinhos. Dentro do nosso organismo existem mais células de microrganismos (bactérias, por exemplo) do que células próprias. Em todo o lado onde tocamos, em tudo o que comemos, existem bactérias, fungos, vírus e é esse contacto que desde tenra idade estimula o nosso organismo a criar as suas próprias defesas e resistência. Na verdade, a maioria dos microrganismos não provoca doenças, não são patogénicos e até nos são úteis. Da mesma forma que não haveria nem pão, nem queijo, nem cerveja sem a utilização de microrganismos, também não sobreviveríamos muitas horas sem os microrganismos que habitam o nosso tracto intestinal e todos conhecemos os desarranjos que ocorrem quando existe um desequilíbrio dessa comunidade.

Não é por isso desejável vivermos num mundo esterilizado, onde todo e qualquer microrganismo tenha sido removido, excepto em casos de extrema debilidade do nosso sistema imunitário, como sucede em certos estados de doenças específicas.

Mas, como é sabido, existem inúmeros vírus, bactérias, fungos e outros seres vivos microscópicos que podem provocar doenças mais ou menos graves e um surto de qualquer dessas doenças pode implicar um processo de desinfecção mais rigoroso em locais de maior disseminação. É por isso que faz todo o sentido, nesta fase de pandemia da covid-19, lavar e desinfectar com maior frequência e cuidado locais de uso constante como casas de banho, maçanetas de portas, áreas comuns em lojas e centros comerciais fechados ou salas de aula, evitando que uma pessoa que tenha tossido ou espirrado e levado inadvertidamente a mão à boca e de seguida tocado numa mesa, cadeira ou manípulo, não vá infectar a pessoa que vem imediatamente a seguir tocar na mesma superfície. Neste caso, não existe qualquer efeito colateral negativo porque por mais exageradamente que se realize o processo de desinfecção, não existe nenhum microrganismo naquelas superfícies que seja útil àquele ambiente ou cuja ausência provoque qualquer problema de saúde pública ou ambiental.

Analisemos agora a mesma situação ao ar livre. Imaginemos que vamos desinfectar toda uma rua, neste caso com um tipo de desinfectante (por exemplo hipoclorito de sódio, mais vulgarmente conhecido por lixívia). O processo é logo à partida ineficaz porque se, por um lado, lava o chão, não lava todas as superfícies nas quais com muito mais regularidade as pessoas tocam (botões de semáforos, paredes, postes, etc.) e o seu efeito é temporário e localizado. É impensável lavar toda uma cidade, um país, com a regularidade com que os funcionários de uma loja limpam os acessos e o interior da mesma. Mas o problema mais grave não é o da “validade” dessa desinfecção. A principal questão é que neste caso o agente de limpeza vai potencialmente destruir também outros seres vivos (desde os microrganismos até aos pequenos animais e plantas) que não são patogénicos e são essenciais ao equilíbrio do ecossistema.

Este problema é particularmente mais grave numa praia, onde um processo generalizado de desinfecção é desnecessário, ineficaz e altamente prejudicial.

A desinfecção de praias é uma actividade totalmente absurda. A praia é um ecossistema vivo e um processo deste tipo (p. ex., com solução de hipoclorito de sódio ou, pior ainda, com ácidos como foi já feito no areal de algumas praias no estrangeiro) irá matar todos os seres vivos indiscriminadamente. São áreas sensíveis nas quais a areia é habitat de inúmeras espécies que servem de alimento para outros animais, como as aves, colocando em risco o equilíbrio do ecossistema da praia e também a qualidade da água do mar, deixando os animais marinhos mais sensíveis com poucas chances de sobrevivência. As praias não necessitam de acções de limpeza artificiais, porque têm a sua própria forma natural de processamento. Devemos, isso sim, concentrarmo-nos em não poluir as praias com qualquer material de natureza humana nem enchê-las de desperdícios. Deixemos o sal do mar, os UVs do sol e a temperatura na área emersa da praia fazerem o seu papel.

E sempre que quiserem intervir em ambientes naturais, praias ou outros, confiem em nós. Perguntem aos Biólogos.

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