Descobrir a centralidade do trabalho – interpelar a esquerda

Temos de saber aproveitar a experiência do confinamento para tirar lições que ajudem a construir um futuro melhor, menos desigual. Essas lições são claras: o trabalho e o seu enquadramento institucional têm de ser colocados no centro de um programa/projeto político que queira respeitar a dignidade humana.

Gostaria que a esquerda aproveitasse esta quase inacreditável experiência de confinamento para tomar verdadeiramente consciência da centralidade do trabalho, do facto de o trabalho de uns ser “mais central” do que o trabalho de outros e de o trabalho ser “mais central” para uns do que para outros. Eis as lições que se podem tirar.

A centralidade do trabalho para a vida coletiva

Para que alguns pudessem ficar confinados – e sabemos hoje que foram sobretudo os licenciados e as classes média e alta –, outros tiveram de continuar a trabalhar: tinha de haver comida nas prateleiras e gente na caixa; tinha de haver médicos e enfermeiras para tratar os doentes; o lixo tinha de ser recolhido e os idosos tratados, etc. Lição 1: a maioria dos trabalhos imprescindíveis para a vida coletiva são empregos mal pagos. Vai a esquerda deixar que a remuneração desse trabalho tão “central” seja determinada pelos mecanismos da oferta e da procura, ou pelo salário mínimo, ou vai ela propor, assumindo a sua função e convicções políticas, que o Estado intervenha nos processos de negociação coletiva para transformar a estrutura dos salários?

Querer manter a economia a funcionar não significa só querer que as empresas possam continuar a ter lucro; significa também querer continuar a produzir e distribuir bens e serviços essenciais. Difundiu-se uma representação preconceituosa da economia quando alguns defenderam ser necessário escolher entre a saúde e a economia, sendo que optar pela economia significava ausência de compaixão e cedência a lóbis económicos. Ora, para que todos continuassem a viver, alguns tiveram de continuar a trabalhar. Lição 2: há uma forte conexão entre economia, vida e trabalho; nenhum subsiste sem algum dos outros. Muitos economistas esqueceram-se deste facto básico, provavelmente porque a teoria económica dominante tem precisamente como característica ter expulsado o trabalho como categoria teórica relevante. Vai a esquerda voltar a colocar o trabalho no centro do seu quadro teórico e do seu projeto político?

A centralidade do trabalho para os indivíduos

Houve, portanto, pessoas que tiveram de continuar a trabalhar. Esses trabalhadores (trabalhadoras) foram aplaudidos como se fossem heróis que se sacrificavam pelos outros. Para a grande maioria deles, no entanto, não era o caso: estavam simplesmente a fazer o que sempre fizeram, cuidando dos outros porque sempre sentiram que esse era o seu dever. Na verdade, o que dá sentido ao trabalho é o facto de se sentir útil aos outros, algo que muitos estudos revelam. Neste contexto, quem especula na bolsa sem produzir nada parasita o – sentido do – trabalho dos outros. Lição 3: é necessário reconhecer a centralidade do trabalho como experiência subjetiva determinante. Que atitude vai a esquerda adotar face às propostas de rendimento básico universal?

Sabe-se hoje que a luta contra a covid-19 está a agravar escandalosamente as vulnerabilidades e desigualdades. As políticas públicas não conseguem fazer chegar os apoios aos trabalhadores e empresas que deles mais necessitam. Isto significa que a sobrevivência dos mais pobres e vulneráveis não tem sido assegurada pelo Estado mas pela possibilidade de acesso ao trabalho. E isto está-se a observar em todos os países do mundo, com destaque para os Estados Unidos mas também nos países europeus, mostrando que a faceta do estado social que mais conta para a vida de muitas pessoas não é o sistema de saúde mas a relação de emprego, ou seja, a existência de um vínculo laboral e a sua estabilidade, porque disso depende o acesso a bens essenciais (saúde biológica e psicológica). Confirmámos o que já sabíamos: é necessário garantir a todos os cidadãos o acesso aos bens comuns que são a saúde, educação, assistência na velhice, etc., mas isto só não chega. Lição 4: é necessário garantir a todos os cidadãos o acesso não só ao trabalho mas a uma relação de emprego institucionalizada. Quais são as medidas que a esquerda considera essenciais para alcançar este objetivo?

Trabalho e empresa

A regulação da relação salarial é, na minha opinião, a mais importante e uma das mais difíceis (em termos teóricos e políticos) das lutas de hoje. Porque o que está em causa não é só o direito do trabalho – já se percebeu que dificultar o recurso a contratos precários ou aumentar a proteção desses contratos não diminui a vulnerabilidade desses trabalhadores, pelo menos em Portugal. O que está em causa é regular o estatuto da empresa enquanto empregadora, evitando os contratos precários mas também os falsos independentes, as subcontratações, etc. Trabalhar para a Uber em Portugal faz-se através não de uma relação de emprego mas de um contrato como pessoa coletiva/empresa; é esse o caso para todo o trabalho através de plataformas digitais.

Tem de se encontrar/construir uma forma de as empresas serem “empregadoras”, em termos jurídicos, de todos os que nelas trabalham, estabelecendo relações de emprego verdadeiramente vinculativas. Precisamente porque não há economia nem vida sem trabalho, não deveria haver empresas que não fossem “empregadoras”, o que representa um desafio tanto para o direito como para a teoria económica. Só isso pode impedir a diluição das fronteiras/responsabilidade das empresas, que significa na prática a diluição dos coletivos de trabalho. Ora, como já disse nestas páginas, é hoje imperioso cultivar a dimensão coletiva nas nossas sociedades. O seu desaparecimento é verdadeiramente um risco civilizacional. Neste contexto, é importante não se deixar iludir pelas supostas vantagens do teletrabalho; o teletrabalho deve ser um direito dos trabalhadores e nada mais. Deve-se resistir à atual tendência das empresas para recuperar produtividade e rentabilidade com base no teletrabalho, que significa na prática maior intensidade e mais horas de trabalho. Lição 5: a esquerda tem de pensar a empresa e como fazer dela uma “empregadora” responsável.

Temos de saber aproveitar a experiência do confinamento para tirar lições que ajudem a construir um futuro melhor, menos desigual. Essas lições são claras: o trabalho e o seu enquadramento institucional têm de ser colocados no centro de um programa/projeto político que queira respeitar a dignidade humana.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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