Morreu Ann Mitchell, uma das matemáticas que derrotaram a Alemanha nazi

Tinha 97 anos e era uma das últimas sobreviventes da mítica equipa de Bletchley Park, onde trabalhou com o pioneiro da computação Alan Turing. Fora-lhe diagnosticada covid-19 havia poucos dias.

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Recriação do trabalho na "Hut 6" de Bletchley Park bletchleypark.org

Ann Katherine Mitchell, uma das matemáticas que ajudaram a descodificar as mensagens nazis durante a II Guerra Mundial, morreu no último fim-de-semana, num lar na Escócia, aos 97 anos de idade. Mitchell, que era uma das poucas sobreviventes da equipa secreta em que se destacou o pioneiro da computação Alan Turing, tinha sido diagnosticada com covid-19 poucos dias antes de morrer.

Em declarações à BBC, um dos filhos de Ann Mitchell, Andy Mitchell, disse que a sua mãe “já tinha perdas de memória e fragilidades físicas” quando lhe foi diagnosticada a doença provocada pelo vírus SARS-CoV-2.

“Fico feliz por ela ter recebido o reconhecimento por uma vida bem vivida”, disse Andy Mitchell, de 61 anos.

A historiadora britânica Tessa Dunlop, autora de um livro publicado em 2015 sobre as mulheres que trabalharam no mítico centro de decifração de Bletchley Park, salientou a importância de Ann Mitchell nos esforços que viriam a derrotar a Alemanha nazi.

“A maioria das mulheres de Bletchley faziam parte de uma fábrica – uma linha de montagem, na verdade – e lidavam com as componentes físicas dos descodificadores. Mas a Anne era excepcional no seu trabalho de descobrir fórmulas para serem usadas nessas máquinas”, disse Dunlop ao jornal The Scotsman, que noticiou a morte de Ann Mitchell, no domingo.

Entre Setembro de 1943 e a rendição da Alemanha, em Maio de 1945, Mitchell contribuiu para a decifração das mensagens trocadas pela aviação e o exército nazis, a partir de uma das cabanas de Bletchley Park, a “Hut 6”. No mesmo complexo, mas na “Hut 8”, e na decifração das mensagens da marinha nazi, trabalhou o matemático Alan Turing, cujo pioneirismo na computação e inteligência artificial foi retratada no filme O Jogo da Imitação, de 2014.

Antes de se juntar à equipa de Bletchley, Mitchell enfrentou e ultrapassou as barreiras da sociedade à entrada das mulheres em áreas como a matemática, numa altura em que a maioria não tinha qualquer tipo de trabalho fora de casa. A sua vontade de estudar matemática foi desincentivada pela directora da faculdade de Oxford onde acabaria por se licenciar, a Lady Margaret Hall, que na altura só aceitava mulheres.

“A minha directora disse aos meus pais que a Matemática não era uma disciplina própria de mulheres”, dizia Ann Mitchell sempre que falava em público sobre o seu passado. “Ela era professora de Química, o que era ainda menos próprio de mulheres. No entanto, os meus pais insistiram e eu pude fazer o que escolhi.”

O secretismo à volta do trabalho desenvolvido em Bletchley Park só começou a ser quebrado na década de 1970, e só nessa altura o marido e os filhos de Ann Mitchell ficaram a conhecer o seu importante papel nos esforços de guerra dos Aliados.

“Até aí, só ouvíamos as histórias fascinantes sobre os feitos do meu pai durante a guerra, porque ele esteve no desembarque na Normandia”, disse Andy Mitchell ao Scotsman.

“Ele foi surpreendido ao descobrir que a sua mulher desempenhara um papel mais significativo na guerra do que ele alguma vez imaginara. E quanto mais íamos descobrindo, mais espantados ficávamos com o profundo envolvimento dela na decifração de mensagens. Não se limitava a fazer trabalho de secretária, era trabalho intelectual genuíno.”

Décadas depois da guerra, quando começaram a ser conhecidos os segredos de Bletchley Park, Ann Mitchell voltou à universidade, em Edimburgo, para juntar um mestrado em Filosofia à licenciatura em Matemática que tirara em Oxford nos primeiros anos da II Guerra Mundial.

Nas décadas de 1970 e 1980, destacou-se pelas suas investigações sobre os efeitos dos divórcios nas crianças, ao mesmo tempo que trabalhava como conselheira matrimonial. Muitos dos resultados do seu trabalho tiveram influência na lei escocesa sobre protecção das crianças. Na década de 1990, já com mais de 70 anos de idade, escreveu vários livros sobre a história de Edimburgo, a cidade onde viveu desde que se casou, em 1948.

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