A imunidade dos exames do secundário à covid-19

Não podemos abraçar uma mãe ou um filho, mas temos de ir dar aulas que garantam um sistema de ingresso fétido e, neste ano, até imoral e ilegal.

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Alunos do secundário no regresso às aulas, nesta segunda-feira, em Lisboa Daniel Rocha

Pela primeira vez em 54 anos, não abracei a minha mãe no dia do seu aniversário, neste ano o 79.º. E ela provavelmente não abraçará o seu neto mais jovem para o mês que vem, tal como não abraçou outros dois netos logo em março. Compreendemos todos que há um bem maior a preservar contra o prazer mais fugaz de umas horas juntos que poderiam pôr vidas em perigo, vidas particularmente estimadas.

Mas agora aqueles que não quiseram ou não puderam abraçar os seus familiares têm de usar transportes públicos e entrar em salas de aula pejadas de moços e moças com enormes saudades de abraços, beijinhos, conversas, futebóis, namoricos e encontrões. Em nome de quê? Em nome da preparação para um exame nacional! Para fazer, ano após ano (e sobretudo este ano), mais um favor ao ensino superior, milhares de professores foram convocados para correrem riscos, para porem os seus em risco e para levarem risco a terceiros. Tenho ou não direito a julgar que o aniversário da minha mãe valeria bem mais o risco (que não quis correr) do que aquele que agora nos obrigam a correr em nome de um disparate ímpar?

Vou agora afastar a leitura pessoal. O “meu” problema vale o que vale. 

Perguntemos: 

a) Para que andámos todos a confinar-nos durante mais de dois meses, a sujeitar-nos a um sacrifício violento, a obrigarmos crianças na flor da idade a emparedar-se em casa, a evitarmos uma vida “normal”? Para nada? É esse exame de acesso algum imperativo categórico nacional? Porquê? Não há alternativas? Quem se atreve a dizer que não?

b) Quem pensou nas direções e nos professores que há semanas refizeram tudo na organização das escolas para agora terem de fazer tudo novamente em nome do interesse de uma fração de alunos? E quem pensou na sobrecarga de trabalho de assistentes técnicos e operacionais, subitamente transformadas em guardiões de Chernobil? Afinal, o que justifica tanto custo geral para tão parcial benefício?

c) Quem pensou nos miúdos e miúdas institucionalizados, que há dois meses não cheiram as famílias, os amigos, a liberdade? E se um dos colegas que vai agora à escola aparecer infetado? Como será? Fecha a instituição, qual lar de idosos? Alguém faz ideia do que tem sido ter apenas metade do pessoal habitual para lidar com todos estes utentes confinados? Valeu a pena para evitar um mal maior, mas afinal esse mal pode agora admitir-se porque há um exame nacional para fazer? E mais: a maioria dos institucionalizados não vai fazer qualquer exame nacional. Mas basta um deles voltar infetado para a instituição e imaginem o resto. Não imaginam, não.

d) Que autonomia e que flexibilidade é esta que obriga as escolas a horários como os que agora são impostos? E quem supôs que se pode garantir o enjaulamento em sala de aula, sem intervalos, após dois meses de confinamento? Onde anda a brigada do sheltox, o tal exército, os comandos, os paraquedistas e o diabo a nove que desinfestariam as instalações? Onde estão os recursos humanos que garantirão o cumprimento deste disparate?

e) Alguém dos centros de decisão faz ideia do que são os horários dos transportes públicos – se circularem – nos desertos do interior? Alguém pensou nos miúdos que acabam a aula de preparação para exame ao meio dia e só têm autocarro para a serra às 17h30? Que farão entretanto? Cumprem a pena na sala de aula? Saem da escola para ir dar uma voltinha? Sob supervisão de quem? Almoçam ração de combate? Onde? No jardim municipal, a dois metros uns dos outros? Deixem-me rir.

f) Alguém pensou naqueles professores, como há na minha escola, que dependem de transportes públicos para irem dar a aula presencial e para voltarem a casa, onde ainda terão de preparar e realizar sessões síncronas com outras turmas, deixando os seus filhos menores ou pais dependentes entregues a si mesmos entretanto?

g) É ou não um dado adquirido que o fecho das escolas em março esteve fortemente relacionado com a contenção da pandemia no país? Que razões há agora para se supor que o regresso às aulas em nada afetará a evolução da pandemia? A causalidade só funciona num sentido, aquele que é conveniente? Alguém supõe que não notámos o desvio no discurso oficial, que ainda há pouco ligava o “planalto” ao confinamento e à cessação das atividades letivas para agora considerar estes quase inconsequentes?

Podia continuar, mas vamos ao essencial: o que está em causa neste regresso não é reanimar a economia. O que aconteceu é que António Costa e os seus ministros não quiseram ou não tiveram coragem para declarar a suspensão dos exames nacionais, particularmente os que querem salvar a todo o custo, que são as provas específicas para acesso ao ensino superior. E não o quiseram fazer porque sabem que isso seria o precedente para justificar aquilo por que todos clamamos há anos – o ensino secundário deixar de alimentar o sistema de ingresso nas universidades. Todos sabemos o efeito que os exames têm nas opções pedagógicas e didáticas do secundário, refém de programas rígidos e de exames a preparar e de contas a prestar pelos resultados alcançados. Se há professores e explicáveis interesses que detestariam ver os exames nacionais acabar — e eu já fui um desses —, há muitos mais que, de bom grado, recuperariam uma gestão verdadeiramente flexível e autónoma do ensino e das aprendizagens sem o cutelo de junho e julho (e agora setembro) sobre as cabeças. Isso, sim, seria uma revolução.

Mas não. Não podemos abraçar uma mãe ou um filho, mas temos de ir dar aulas que garantam um sistema de ingresso fétido e, neste ano, até imoral e ilegal: garante a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 25.º, o direito à integridade física e psíquica dos cidadãos. Mas pelos vistos isso não vale nada caso o sacrossanto exame de acesso seja posto em causa...

Pois bem, há que dizê-lo com clareza: 

1) Os professores do ensino secundário não são e não querem ser funcionários de qualquer universidade. Os recursos humanos do ensino secundário têm mais e melhor para fazer do que substituírem, sem anuência, os recursos humanos das universidades.

2) Cada universidade sabe melhor do que ninguém qual é o perfil de estudante desejado e, portanto, não há justificação plausível para transferirem esse ónus para instituições a elas externas. Devem doravante elaborar as provas de ingresso que se ajustem aos seus projetos educativos e de formação.

3) O ensino secundário, por seu lado, sabe há muito que o Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular só pode ser maximizado quando os seus esforços e opções se afastarem decididamente da preparação para exames nacionais. Não sou eu que o digo, é a OCDE, cujos estudos são invocados sempre que há conveniência nisso e esquecidos quando não há.

4) O direito de acesso à universidade não implica que tal seja feito mediante a realização de exames nacionais. Há outras opções: por exemplo, considerar as classificações internas das escolas e, caso se pretendesse evitar inflacionismos de última hora nalgumas delas, prescrever uma regra ad hoc que proibisse a variação em mais de um valor das classificações do 3.º período em relação às do 2.º período.

5) O risco em termos de saúde pública é um preço elevado e imoral a pagar para benefício de alguns, os quais podem ver o seu direito de ingresso igualmente garantido sem aquele custo associado.

6) A reativação da atividade económica não é o que está em causa nesta insistência no regresso às escolas e o ganho marginal que a economia circum-escolar terá não justifica nem de perto, nem de longe que se corram os riscos que estão a ser corridos.

7) O Governo tem o poder e a legitimidade tutelar para impor aos professores do secundário a subserviência deste sistema de acesso anacrónico, mas não tem a autoridade moral para, primeiro, pedir os (compreensíveis) sacrifícios humanos, pessoais e familiares que a contenção da pandemia justifica e, depois, obrigar a sair de casa alunos, famílias, funcionários e professores, colocando-os em risco e aos seus mais próximos. É sobretudo lamentável que o Governo, para manter o favor de sempre às universidades, obrigue milhares de profissionais a gastar milhares de horas na reorganização das escolas e das suas vidas, que é o que tem estado a acontecer longe dos olhares públicos. Esperemos que Mário Centeno os saiba quantificar e mostre a António Costa a fatura, caso o argumento moral lhe seja indiferente.

Os virologistas que ponham os olhos nos exames do secundário. Estes são totalmente imunes à covid-19 e mantêm-se imperturbáveis, pague-se o preço pessoal, social e institucional que tiver de se pagar para servir os interesses de alguns. Isto, sim, é imunidade. E de grupo.

O autor escreve de acordo com o novo Acordo Ortográfico

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