“Desconfinei” por uma cárie e ficou tudo bem

Cheio de coragem, aventurei-me e fui ao dentista, actividade tão trivial e que hoje tem tanto para contar. Espero conseguir ajudar os próximos aventureiros que saiam de casa apenas para resolver pequenos problemas.

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LUSA/GUILLAUME HORCAJUELO

Sinto-me um pequeno mártir que foi descobrir o novo mundo, tal como nos Descobrimentos. A diferença é que não fui roubar nada a ninguém. Cheio de coragem, aventurei-me e fui ao dentista, actividade tão trivial e que hoje tem tanto para contar. Espero conseguir ajudar os próximos aventureiros que saiam de casa apenas para resolver pequenos problemas.

Em toda a quarentena, a coisa mais difícil de suportar destaca-se com evidência de todas as que a rodeiam: dor de dentes. Vivi dois meses com uma dor de dentes boomerang, que ia e voltava, que não era tão grande para uma urgência, mas suficiente para me tirar o sono em algumas madrugadas, “obrigando-me” a ver séries madrugada fora. Nem tudo é mau, certo?

Todo eu “quitado” como mandam as regras, fui recebido por uma porta automática que já não reconhece os meus passos. Nem os meus, nem os de ninguém. Também a porta se esqueceu de como é viver numa sociedade normal, com pequenas regalias de preguiçoso. Acenei e aguardei pela recepcionista, que me recebeu com o miniquestionário “Despista a covid-19” e pediu para medir a temperatura. No fim, tal como a cereja no topo do bolo, ofereceu-me álcool gel para as mãos. Agradeci com o carinho que o meu olhar permite, pois ainda a covid-19 não tinha nascido e já eu andava com álcool gel atrás, tal como um bom e equilibrado germofóbico.

De máscara na face e mãos desinfectadas, aguardei a minha vez. Na hora marcada fui chamado e, antes de entrar no corredor que daria acesso aos gabinetes, fui recebido por uma pessoa vestida de médico-astronauta-apicultor, tal como já vimos em tantos filmes, telejornais e indústrias farmacêuticas. Trazia uma caixa de plástico onde deveria deixar o que trazia comigo, carteira e telemóvel. De seguida, uma capa protectora para os ténis. Se trazia covid-19 nas extremidades a sul do meu corpo, ficou bem guardado naquele tecido leve que me aqueceu os pés durante a consulta. Sim, aqueceu os pés porque, para quem calça o 43 e decide escolher uns ténis de Inverno, com maior relevo e grossura, não vai conseguir enfiar a capa no calçado que trouxer. A solução: descalçar-me. De meias, as protecções já tinham espaço de sobra, e assim fui rumo ao consultório. Sempre gostei de andar descalço ou de meias, portanto, tudo estava certo neste novo cenário. Era quase um sonho.

Serve este texto para elogiar a clínica que me deixa os dentes bonitos, que tem todos os requisitos e processos articulados para manter uma higienização perfeita do espaço em que opera. Em jeito de confiança, eu comeria uma torrada que caísse naquele chão com a manteiga virada para baixo. Em 2019, não hesitaria três segundos, mas hoje nem comida levei.

Se andar descalço é um descanso, ter uma consulta dentária deitado de meias e olhos fechados dá uma estranha sensação de conforto caseiro. Parece que estava a dormir de boca aberta, mas alguém estava a aproveitar esse facto para me dar uma limpeza geral com flúor e outros termos técnicos de medicina dentária que, de momento, se escondem debaixo da língua.
Não há medo, não há receio. Há brio e respeito, há condições para acreditarmos que, pouco a pouco, tudo isto será normal, ou que nos iremos habituar tão rápido a estes pequenos gestos que recordaremos 2019 com algum carinho e poucas saudades. “Lembras-te quando falávamos demasiado perto uns dos outros? Bons tempos.” Não prevejo o futuro, mas vejo um bom futuro para todas as situações.

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