Um golpe constitucional na União Europeia?

O direito não vive à margem da sociedade. Os tribunais com um certo ADN político (os tribunais constitucionais) não podem viver como se mais nada existisse para além deles.

Este texto é uma reflexão sobre o acórdão do Tribunal Constitucional alemão (TCA) que exigiu do Banco Central Europeu (BCE) explicações sobre a constitucionalidade do programa de compra da dívida pública. O assunto tem motivado várias reflexões no espaço público: Miguel Poiares Maduro, José Pedro Teixeira Fernandes (por duas vezes), Paulo Rangel e Rui Tavares assinaram alguns dos contributos mais interessantes dos últimos dias.

O que está em causa tem uma dimensão política e uma dimensão jurídica. No plano jurídico, tem sido discutido se o TCA tem legitimidade para desafiar o BCE a convencê-lo que aquisição de dívida pública não viola os tratados europeus. A discussão está contaminada por um certo viés, havendo acusações ao Tribunal de Justiça da UE (TJUE) por ter promovido um método não político de avanço da integração europeia (logo, não caucionado pelos representantes dos cidadãos). Com a reconhecida ousadia do TJUE na interpretação do direito da UE, o federalismo jurídico foi longe de mais. De acordo com os críticos, os excessos do TJUE terão motivado a reação do TCA.

Esta interpretação é contestável em dois planos. Primeiro, o TJUE não é o único tribunal constitucional (consideremo-lo assim) a socorrer-se de poderes hermenêuticos, aclarando o sentido jurídico-político de normas axiais do sistema político e dando um contributo para a consolidação do sistema político. Os tribunais constitucionais desempenham funções políticas. É só recordar a polémica em torno do Tribunal Constitucional português quando, a meio da tempestade dos anos da troika, reprovou normas constantes de orçamentos de Estado do governo de Passos Coelho. Na altura, de ambos os lados da trincheira surgiram acusações que desafiavam os opositores a não politizarem o Tribunal Constitucional, como se a sua visão do órgão constitucional não fosse também ela política.

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Juízes do Tribunal Constitucional da Alemanha são alvo de críticas até no seu próprio país Reuters/Ralph Orlowski

Segundo, é o TJUE que exerce jurisdição sobre o direito da UE. A atitude do TCA está refém de um cinismo improvável: a jurisdição constitucional alemã acusou o TJUE de ter julgado para além das suas competências quando autorizou o BCE a comprar dívida pública. Ora, pergunte o leitor atento: e não foi isso que o TCA fez, ao desafiar o BCE (e o TJUE) num domínio que está fora das competências dos tribunais constitucionais dos Estados membros?

A polémica não se dissocia de uma dimensão política. Por muito que vários analistas não se desprendam da vertente jurídica, o assunto extravasa as fronteiras do direito. O meu argumento é o seguinte: todas as decisões têm um timing. O acórdão do TCA, publicado em 5 de maio de 2020, em plena crise pandémica – e quatro dias antes do dia da Europa... – encontrou o pior momento possível. O BCE já tinha aprovado um programa de compra de dívida pública, antecipando as dificuldades orçamentais que os Estados membros vão atravessar quando a fatura do ajustamento à pandemia bater às portas dos governos. O TCA ameaça descer uma espada de Dâmocles sobre o BCE e, por arrastamento, sobre um importante instrumento de reação a uma crise sem precedentes. O TCA demorou dois anos a reagir ao acórdão do TJUE que confirmou a constitucionalidade do programa do BCE. Logo nesta altura, em que o alarme social está em níveis máximos e a fragilidade da construção europeia está a ser testada. A oportunidade política do acórdão do TCA não pode deixar de ser questionada.

O TCA anunciou que se a justificação do BCE não for convincente, o Bundesbank será impedido de participar no programa de compra de dívida pública do BCE. Ao fazê-lo, poderá amputar a eficácia deste programa, desguarnecendo a zona euro (e os Estados membros) de armas para combater a crise profunda que se antecipa. Se o TCA se posiciona no tabuleiro onde se movem os atores políticos, por que motivo os críticos do ativismo do TJUE não acusam a jurisdição constitucional alemã de excesso de protagonismo político?

Uma dupla vertente, política e jurídica, é o contexto da polémica fermentada pelo TCA, como foi dito no início. Mas as duas dimensões não são isoladas. Correm em paralelo e são permeáveis uma à outra. Como tudo é político, a dimensão jurídica expõe-se mais à dimensão política do que o contrário. Os juristas e os que afunilam a análise do caso à vertente jurídica parecem esquecidos que o direito não vive sozinho. O direito não vive à margem da sociedade. Os tribunais com um certo ADN político (os tribunais constitucionais) não podem viver como se mais nada existisse para além deles. O direito não é a peça centrípeta.

Há outra forma de contextualizar o episódio? Que me perdoe o leitor se descaio na especulação. Se o TCA insiste que o BCE está a agir contra os tratados europeus e o TJUE não acautelou a legalidade da UE, o TCA está a chamar a si um lugar no tabuleiro político. Será um meio de exercer pressão sobre os governos para reverem os tratados europeus de modo a ficar previsto que o BCE pode comprar dívida pública dos Estados membros? Faltará saber se os governos nacionais (com o alemão à cabeça) estão disponíveis para caucionar esta revisão dos tratados europeus. Até porque, quando o BCE se propôs a adquirir dívida pública, Merkel não se opôs, contrariando a intransigência do governador do Bundesbank.

E se este não for o contexto do episódio, será que o TCA, preso a uma interpretação de um direito de que não é intérprete, quer ser o coveiro da Europa?

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