O princípio da incerteza

Nada nos preparou para as incertezas que estamos a viver. A “normalidade”, tal como a conhecíamos, será reposta com o desconfinamento?

Temos, todos, a necessidade de algumas certezas. Claro que nenhuma vida é feita, inteiramente, de certezas. Mas a maior parte de nós prefere viver do lado da certeza do que do lado da dúvida. Desde os primórdios, seja por via de exercícios rituais, mitos, crenças ou da força bruta, certeza é sinónimo de segurança, de previsibilidade.

Se percorrermos os tempos da História, verificamos que há períodos que oferecem maiores certezas — independentemente do regime político, social, económico, cultural, de referência — e outros que têm preponderância de incertezas. A cada momento, a vida das sociedades e das famílias é um compósito de certezas e incertezas, que se cruzam e entrecruzam em diferentes níveis, tecendo malhas complexas, por vezes difíceis de destrinçar.

A certeza do crente nas religiões monoteístas, do cientista nos dados da experiência, do marxista no socialismo científico, do liberal nos direitos individuais, do matemático nas equações, do engenheiro nos seus cálculos, são exemplos de confiança, de segurança. As instituições, expressas em conceitos como família, Estado, Igreja, mercado, propriedade, ou ideias como liberdade, amor, verdade, esperança, ética, são necessárias para a subsistência da vida pessoal e social. Mas, na diacronia, rapidamente percebemos que as certezas, as convicções de ontem, podem ser até ridículas nos dias de hoje — o que faz perceber que as certezas de hoje podem ter caminho curto no futuro.

Dizer que a Terra não é o centro do Universo, que Deus morreu, que os homens são todos iguais, por exemplo, são declarações que abalaram e revolucionaram a vida das sociedades, alterando certezas que perduraram durante séculos, a favor de outras. O modo como, no século XX, a teoria da relatividade ou a mecânica quântica mudaram as perceções da realidade expostas pela física dita clássica, ou a queda do Muro de Berlim, das Torres Gémeas, a ascensão da China a geoestratégia do século XXI, mostram quão fluído é o lugar da certeza.

Na segunda década deste milénio, tínhamos por adquiridos, por certos, o triunfo da saúde dos mais velhos, o preço barato das viagens de avião, a capacidade superior da ciência, que as epidemias eram coisa para acontecer em África ou nos confins do Oriente. O turismo de massas era florescente, assim como os grandes festivais de música, as grandes exposições. O futebol era uma indústria imparável. Mais certo do que tudo isto era a infalibilidade das dinâmicas de mercado, a força da economia do petróleo, a especialização produtiva que fazia da China a fábrica do mundo.

Todas estas certezas deixaram de o ser.

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A covid-19 veio questionar muitas das nossas certezas: e depois do vazio? REUTERS/Jorge Silva

Os seniores estão muito expostos à covid-19 e esta exposição em termos de saúde altera, também, a perceção do seu lugar social. A crise profunda em que mergulhou a indústria de aviação terá, certamente, repercussões no preço das viagens. A ciência médica, face à pandemia, e por agora, só nos consegue dizer para lavarmos as mãos e não respirarmos uns para cima dos outros, algo que os médicos (ou seus predecessores) já recomendavam há 2000 anos. A covid-19 atacou o Ocidente – e o conjunto de países mais destacados no Índice de Desenvolvimento Humano no seu âmago, paralisando a Europa e os Estados Unidos. Os turistas, que eram já parte integrante da paisagem urbana de milhares de cidades no mundo, desapareceram. Os festivais e exposições que arrastavam multidões não acontecem. Os campeonatos de futebol têm futuro incerto.

Os mercados da maior parte de produtos e serviços colapsaram, para florescer uma atípica “economia de guerra”, com hiperprodução de um número limitado de bens, escassez de outros, uma quebra brutal de procura da maioria e limitações graves de produção e gestão de stocks, originando quedas históricas nos preços, de que o petróleo é o exemplo mais destacado. Entretanto, a dependência excessiva da produção chinesa para uma multiplicidade de domínios coloca desafios novos e questões prementes de decisão política – podemos manter o modelo produtivo da globalização ou será necessário reindustrializar a Europa?

As famílias, que viviam no frenesim de um dia a dia entre trabalho, escola e consumismo, foram confrontadas com o retorno ao território matricial da casa, com todos os desafios pessoais e sociais que esse regresso provocou. A relação com a fisicalidade e com o espaço digital alteraram-se dramaticamente.

Estas situações ocorrem em todos os continentes, apesar de haver algumas variações, de que a abertura do modelo sueco e a restrição estrita do modelo chinês são exemplo. Infelizmente, é nos países mais desfavorecidos que a situação se torna crítica, com largas partes das populações sem condições de acesso a cuidados de saúde, alimentos, informação.

Nada nos preparou para as incertezas que estamos a viver. Como e quando podemos voltar a trabalhar, a estudar, a divertir, a viver, “normalmente”? A “normalidade”, tal como a conhecíamos, será reposta com o desconfinamento?

Vivemos ancorados em algumas certezas: modelo de Estado, modelo económico e social, conjunto de representações culturais. Usamos para tudo a mesma base — suporte tecnológico e científico —, mesmo quando existe debate sobre se devemos ter mais ou menos Estado, mais ou menos mercado, mais ou menos cidadania, mais ou menos pluralismo cultural. Este debate ocorre dentro de um modelo em que algumas certezas permanecem — o Estado como figura central dos sistemas políticos; o mercado como parâmetro das trocas de bens e serviços; as ideias de cidadania e de pluralismo cultural como regras de identificação do humano.

Estas certezas sofreram um enorme abalo.

Se o papel do Estado se reforçou neste período que estamos a viver e o sistema internacional se mostra enfraquecido, criando o fantasma do avanço dos nacionalismos e de enfraquecimento do multilateralismo, será mesmo que é certo o papel do Estado? É que se o Estado tem sido o grande protagonista mediático da crise pandémica, a realidade de facto mostra que as autarquias locais, a organizações de solidariedade social, a sociedade civil, as empresas, nomeadamente da área tecnológica e têxtil, a comunicação social, o sistema científico, têm manifestado uma capacidade de iniciativa própria que não espera pelo Estado. No caso português, é evidente que quatro décadas de democracia no modelo europeu estão a dar frutos magníficos. Realça-se a capacidade de iniciativa de múltiplos atores. Em Portugal, o Estado tem cumprido o seu papel normativo de forma capaz, apesar de ter resultados operacionais medianos. Valeu a autodisciplina dos portugueses e o fecho de fronteiras. O contributo dos diferentes agentes públicos e privados. É certo que o Estado e o unilateralismo serão preponderantes? Ou será que a experiência da livre iniciativa e auto-organização de múltiplos agentes vai abrir o campo a uma sociedade mais confiante nas suas capacidades?

A diminuição generalizada de recursos financeiros é hoje uma certeza. Esta diminuição corresponde a empobrecimento da maioria da população e das capacidades estatais. Na sociedade de hiperconsumo, estávamos habituados a tudo gastar. Na atual sociedade de hipoconsumo, a diminuição generalizada do mesmo é um problema ou uma oportunidade para novos estilos de vida, de sustentabilidade ambiental, de dinâmicas económicas e sociais? A economia das trocas tem de ser mediada, sempre, por um padrão monetário ou haverá lugar à troca direta ou a outras formas de apreciação de valor? O sistema internacional desmoronou-se ou pode organizar-se em novos patamares de cooperação?

O princípio da certeza, que organizou muitas vidas, é agora substituído pelo princípio da incerteza — há mais dúvida, mais perguntas — o que é um desafio que nos interpela. Diante do azar da exposição a uma pandemia está a sorte de poder criar novas respostas, sem preconceitos, sem certezas. Como em outros momentos da História, temos a descoberta pela frente.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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