Um novo pacto mundial verde e da saúde

Será ainda possível construir uma resposta global à covid-19, às suas consequências sociais e, ao mesmo tempo, prevenir a catástrofe ecológica?

Os humanos descobriram, na tragédia, que o mundo é global além das mercadorias e das finanças, que o multilateralismo é frágil e que Trump o quer colocar ao serviço do obscurantismo. Dizia-se que o mundo, para se unir, precisaria de uma “invasão de marcianos”, pois bem, o medo que muitos sentem, semelhante ao que Orson Welles provocou em 1938, em Nova Iorque, ao teatralizar A Guerra dos Mundos num programa de rádio, não levou ainda a essa unidade.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas, paralisado pela rivalidade sino-americana, não assumiu as suas responsabilidades, nem tão-pouco aprovou a resolução de apoio, elaborada pela França e pela Tunísia, ao apelo de Guterres para um cessar-fogo mundial, de modo a permitir o acesso de ajuda médica aos países em guerra.

A crise do multilateralismo é fruto da regressão da democracia liberal. Dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança — Estados Unidos, China, Rússia, Reino Unido e França — só esta última não tem um governo nacionalista ou autocrático. A Índia e o Brasil, candidatos a membros permanentes, são governados por extremistas. É triste constatar que os Estados Unidos do New Deal e do Plano Marshall, as duas grandes referências no combate às crises sociais, têm agora para oferecer ao mundo apenas uma proposta suicidária.

Os otimistas consideram que a evidência dos desafios imporá uma nova era de cooperação internacional, como aconteceu no passado, lembrando como as Nações Unidas (de que a OMS é uma das Agências) e a Comunidade Europeia surgiram da II Guerra Mundial, e sublinhando ainda a erradicação da varíola, que no século XX terá causado 300 milhões de mortes, pela campanha de vacinação lançada pela OMS em 1966. Em 2001, perante o alastrar da epidemia da sida, a OMC decidiu em Doha, com um papel ativo do Brasil, que os governos podiam decidir a venda a preços mais baixos de “genéricos” para protegerem a saúde dos seus cidadãos, apesar de as patentes pertenceram a laboratórios privados.

A tripla crise que enfrentamos é um estímulo à cooperação internacional. Impõe-se que as forças progressivas proponham um pacto global para a crise sanitária, social e ecológica, um Novo Pacto Global Verde e de Saúde (Global Green and Health New Deal), inspirado pelo que tem vindo a ser proposto com sucesso, no debate americano, por congressistas como Alexandria Ocasio-Cortez. Um pacto que se articule à volta de três grandes temas globais: saúde, para prevenir pandemias e garantir que todas as regiões do mundo, sem discriminação, têm acesso a medicamentos e vacinas; economia, em resposta à recessão para prevenir a miséria e a fome; ambiente, na promoção de uma economia verde, sustentada num quadro legal que proteja e valorize o contributo de todas as “amazónias” para o sistema terrestre.

É um projeto de bom senso, que aliás já foi proposto, embora em vão e sem a componente da saúde, na resposta à crise financeira de 2008, em relatórios para as Nações Unidas e livros como o Global Green New Deal, de Edward Barbier. O imperativo então, como hoje, era impedir que os biliões a serem investidos nas economias para enfrentar a recessão servissem para financiar uma economia carbonizada que agravasse a crise ecológica e a especulação financeira.

A União Europeia é a entidade indicada para propor nas Nações Unidas e no G20 o Novo Pacto Global Verde e de Saúde. Se o fizer, seguramente, encontrará apoio nos cidadãos do mundo inteiro, incluindo nos americanos e brasileiros.

Trump não é um obstáculo intransponível. A sua virulência não tem impedido a cooperação internacional face à pandemia, como mostra a resolução da Assembleia Geral da ONU ou a conferência mundial, de 24 de Abril, convocada pela OMS, França, União Europeia e Fundação Bill e Linda Gates, em que os participantes se comprometeram a garantir que qualquer tratamento contra a covid-19 será acessível a todos.

A União Europeia e as suas democracias liberais podem ser decisivas na configuração do mundo pós-covid-19, mas para isso precisam de se salvar a si próprias, respondendo às consequências da crise sanitária com um projeto que transforme radicalmente a economia e a política — promovendo um verdadeiro pacto verde, que seja exemplar e não apenas um slogan. O Pacto Verde da Comissão não tem nem metade dos recursos necessários e a proposta de orçamento da União para 2021-2027 não ultrapassa 1,074% do produto dos Estados-membros. O novo pacto verde deve ser o plano de reconstrução europeia pós-pandemia, todavia, para corresponder às necessidades o orçamento da União, deve ser revisto para 2% do produto.

O regresso à vida na Terra, sem a ameaça mortal das pandemias, da miséria, da desigualdade e do aquecimento global é possível, porém, para tanto, é preciso romper com o modelo de desenvolvimento neoliberal que nos trouxe à distopia em que vivemos, substituindo-o por um mais justo e fraterno.

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